Público - 05.10.2019

(nextflipdebug5) #1
8 • Público • Sábado, 5 de Outubro de 2019

ESPAÇO PÚBLICO


Historiador. Escreve ao sábado

O RUÍDO DO MUNDO


A mentalidade provinciana


A


completa ausência de debates,
discussões, posições sobre
matérias internacionais na
campanha eleitoral revela o
carácter paroquial da nossa
política. Revela também uma
profunda inconsciência sobre o
que se está a passar no mundo,
que pode alterar todos os
nossos planos e projectos
nacionais de um dia para o outro. Por Æm,
revela uma coisa ainda pior, a interiorização
da completa impotência nacional para ter
uma política externa que corresponda ao
interesse nacional, e aos interesses comuns
que partilhamos com os nossos aliados.
Este desinteresse é acompanhado pela
comunicação social, que, salvo raríssimas
excepções, acha que falar destas coisas não
interessa a ninguém, deita abaixo as
audiências ou, pior ainda, sugere que é como
dar pérolas a porcos, pela ignorância dos
portugueses sobre a política internacional. É
um círculo vicioso que se agrava cada vez
mais e se torna mais preocupante, porque a
situação internacional é cada dia mais
perigosa.
O desprezo pelas questões internacionais
tem duas faces e uma natureza diferente em
cada uma, embora haja elementos comuns.
As duas faces são a Europa e o mundo, a
política nacional e comum na União
Europeia e a política externa propriamente
dita face aos grandes problemas globais, o
independentismo catalão, a guerra das
tarifas, a presidência Trump, o crescendo do
autoritarismo e a crise da democracia nos
EUA, Brasil, Turquia, Filipinas, Hong Kong,
as grandes linhas geoestratégicas face à
Rússia, China, o Médio Oriente, o ambiente,
os direitos humanos (ou a falta deles), as
guerras e migrações, etc. Sobre tudo isto,
quase nada, como se pudéssemos continuar
com a nossa vidinha sossegada, com o
mundo a arder à nossa volta.
O caso da Europa é mais complexo, mais
difícil de discutir, porque existe uma censura
objectiva para impedir a sua discussão livre,

EUA, e do carácter caótico e errático da sua
política externa. Mesmo esta descrição é
eufemística, à medida do que vamos
sabendo, por exemplo, sobre a Ucrânia e a
utilização de chantagem sobre um país
fragilizado pelo seu conÇito com a Rússia,
para obter não só informações, mas
procedimentos judiciais contra o seu
adversário principal,
Biden. O narcisismo
patológico de Trump,
as suas obsessões de
grandeza são a
fractura que países
como a Arábia Saudita
têm usado com
sucesso para
prosseguir uma
política contra o
xiismo, tendo como
alvo o Irão. Essa
política entronca com
o radicalismo sionista
de Netanyahu e
ameaça levar a uma
guerra no Golfo
Pérsico, com países dotados de armamento
soÆsticado e exércitos numerosos, e que
podem causar enormes danos à economia
mundial.
O mesmo Trump que é alegremente
toureado pelo ditador da Coreia do Norte
permanece silencioso sobre Hong Kong

mesmo em plena guerra de tarifas com os
chineses, e em tudo o que toca deixa o rasto
da sua vaidade e incompetência, agravando
todos os conÇitos que já existiam. Já nem
vale a pena perguntar como é que isto
aconteceu e como o mundo pode estar à
mercê de um psicopata, porque a verdade é
que já aconteceu.
Os nossos candidatos a primeiro-ministro e
os partidos que os apoiam têm opiniões sobre
o que se passa para além da nossa frágil
fronteira? Logo aqui ao lado, o que vão dizer e
fazer quando o Estado espanhol mandar os
presos políticos catalães para longas penas de
cadeia? E que opiniões têm sobre os planos
de Boris Johnson para negociar o “Brexit”?
Ou como vão tratar gente como Bolsonaro?
Isto, num país que parece que só conhece um
ditador no mundo, o obscuro Obiang da
Guiné Equatorial. Ou como vamos responder
às tarifas de Trump de produtos da União
Europeia? Também vamos impor tarifas?
Convém lembrar que em muitas destas
matérias Portugal tem um voto na União. Não
deveríamos saber como ele vai ser usado?
O problema das paróquias não é quem lá
vive, é quem lhe deÆne as fronteiras, a
identidade e a dignidade. A Dinamarca
também é pequena, mas mandou Trump
passear na sua proposta “absurda” de
comprar a Gronelândia. Sem hesitações.

Os candidatos a


primeiro-ministro e os


partidos que os apoiam têm
opiniões sobre o que se passa

para além da nossa fronteira?


José Pacheco Pereira


devido ao peso do “consenso europeu” que
inclui todos os partidos de governo, PS, PSD,
CDS, e compromete no silêncio os partidos
que têm alianças, como a “geringonça” —
falam, discordam, mas são inconsequentes.
O mesmo se passa com a atitude europeísta
da maioria da comunicação social, que tende
a proteger a “discussão” europeia de um
verdadeiro escrutínio e a repetir aÆrmações
sem fundamento. Veja-se o que se passou
sobre a “importância” do pelouro da
comissária portuguesa, e do bravado
nacional sobre o seu papel crucial, para
depois se descobrir a redução dos seus
poderes, o corte dos seus fundos e a
colocação sofrível no ranking dos
comissários. Em tudo o que é secundário e
ilusório somos os maiores, no que é mais
importante, nem um pio. Nem vale a pena
chover no molhado.
Ora, se a Europa está de rastos, é uma
sombra do que era, e o que sobra das ruínas
é uma tendência para limitar as democracias
nacionais a favor de soluções impostas pelos
grandes países, em particular a Alemanha,
no resto do mundo aproxima-se a
tempestade perfeita. Se olharmos para os
EUA sob a presidência autocrática de Trump,
assistimos ao declínio da democracia
americana, com enormes repercussões em
todo o mundo, favorecendo regimes como a
Rússia de Putin e a China comunista, ambas
beneÆciando da política isolacionista dos

Em tudo o que
é secundário
e ilusório
somos os
maiores,
no que é mais
importante,
nem um pio
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