Público - 05.10.2019

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Público • Sábado, 5 de Outubro de 2019 • 9

ESPAÇO PÚBLICO


e o marketing, o treino e a formação
proÆssional. Temos uma longa tradição de
fazer pouco e de mau investimento, e isso
não desapareceu. Resultado: a
produtividade do país não cresce e, sem
aumento de produtividade, não há criação
sustentável de riqueza.
Nestas condições, como é que Portugal
pode sobreviver numa Europa estagnada
economicamente, em que a Alemanha
continua a praticar e impor a sua ortodoxia
Ænanceira focada no controlo da inÇação,
quando o que temos
é um continente em
deÇação? Como vai
Portugal sobreviver
quando o BCE
terminar a sua
política monetária
expansionista, que
não consegue
estimular a
economia? O que vai
acontecer a
Portugal, incapaz de
mudar o seu modelo
de desenvolvimento
económico, incapaz
de libertar o sector
de produção de
bens
transaccionáveis,
quando as
exportações
enfrentarem
diÆculdades? É
avisado contar Professor do Instituto Superior Técnico

António Costa Silva


Portugal e a ponta do icebergue


A


campanha eleitoral aÇora a
ponta do icebergue, mas para
encarar o futuro é preciso ir
mais fundo. À superfície não há
dúvida que o país melhorou
nos últimos anos: a reposição
de rendimentos; o crescimento
económico; o controlo das
contas públicas; o déÆce mais
baixo da democracia; a descida
do desemprego; a atmosfera mais respirável
na sociedade. Isto é importante mas não
serve de garantia para o futuro se não
tivermos “a capacidade de apreender em
que espécie de mundo estamos a viver”,
para utilizar uma expressão de George
Orwell.
Um mundo que assiste à desintegração do
Ocidente, ao ressurgimento dos
nacionalismos identitários e da xenofobia, à
destruição das instituições multilaterais, à
desglobalização, às guerras comerciais, à
estagnação económica da Europa e à sua
crise política com o “Brexit”, à
disfuncionalidade do euro e às forças
centrífugas que ameaçam o projecto
europeu, à recessão anunciada. O país está
preparado para isso? Não está.
O paradigma económico não mudou,
mantém os mesmos vícios e deÆciências.
Portugal tem uma economia exclusiva, a
maioria das pessoas não participa nas
actividades económicas, os incumbentes
são protegidos, as barreiras de entrada são
elevadas, a concorrência e a competição são
baixas. Não há estímulos para a criação de
mercados mais inclusivos permitindo o
ingresso do maior número de pessoas na
actividade económica, criando condições
para que quem tem boas ideias seja capaz
de começar o seu projecto. A isto acrescem
as deÆciências de qualiÆcação dos recursos
humanos e de gestão das empresas, baixo
investimento, e que é muitas vezes mal
feito, improdutivo e aposta mais no capital
físico “não inteligente” (rotundas, piscinas
municipais, pavilhões e estádios que estão
vazios), em detrimento do investimento que
é crucial para aumentar a produtividade e
requer o foco no capital inteligente como
equipamentos informáticos, tecnologias de
informação e comunicação, e capital
intangível, como as bases de dados, o
software, o capital organizacional, o design

apenas com o turismo, apesar da sua
contribuição extraordinária nos últimos
anos, quando a experiência ensina que é
volátil e depende de factores conjunturais?
Neste quadro, é importante ir ao fundo do
icebergue e compreender alguns desaÆos
cruciais que o país enfrenta.
O primeiro é a necessidade de repensar o
modelo de desenvolvimento económico e
torná-lo mais sustentável. Portugal cresce
pouco. Entrou no século XXI e a economia
continua no século passado. De 2001 a 2015,
Portugal cresceu à taxa média de 0,05% ao
ano. No mesmo período, o investimento
caiu 47%. Não admira que o país tenha ido
parar à bancarrota. Apesar da recuperação
dos últimos anos, o país ainda tem um
investimento baixo e tem um problema
crónico de incapacidade de repor o seu
stock de capital. E sem investimento
inteligente, não há recuperação económica
sustentável.
O crescimento económico dos últimos
anos deve-se muito à política monetária
expansionista do BCE e à dinâmica das
empresas e do sector privado, que foram
capazes de fazer crescer as exportações.
Mas o crescimento é ainda limitado e é
preciso construir políticas públicas
inteligentes que sejam capazes de criar
condições para mudar a economia e dar
sustentabilidade. O principal problema de
Portugal não é a escassez de recursos, é a
escassez de inteligência nas políticas
públicas. Essas políticas devem visar a
criação de uma economia mais aberta, com
investimento público na qualiÆcação dos

O principal
problema de
Portugal não é a
escassez de
recursos,
é a escassez
de inteligência
nas políticas
públicas

recursos humanos e a abertura à iniciativa
privada. São as empresas que criam
riqueza, mas em Portugal as empresas são
hostilizadas. O desenvolvimento económico
deve combinar os sectores tradicionais com
a criação de outros pólos industriais,
potenciando a revolução digital, criando
aceleradores de negócios, apostando na
transição energética, nos recursos
endógenos, incluindo as energias
renováveis, o gás, o lítio, o cobalto e as
terras-raras, potenciando a Zona
Económica Exclusiva e o cluster do mar,
usando a digitalização, a tecnologia e o
conhecimento para desenvolver um modelo
sustentável capaz de proteger os
ecossistemas e ao mesmo tempo criar
riqueza. As biotecnologias, as ciências da
saúde, as nanotecnologias, as redes
energéticas inteligentes, as energias
renováveis, as pescas e portos, todos esses
sectores podem, de forma articulada e com
políticas públicas integradas, abrir as portas
do futuro.
O segundo desaÆo é melhorar o sistema
político e combater a distância que existe
entre este e os cidadãos. A regeneração da
política passa por uma governação mais
inteligente, estruturas de decisão mais
eÆcazes, novos modelos de participação.
Sem diálogo com os cidadãos e sem a sua
participação, o sistema político Æca cada
vez mais longe e isso faz medrar a
desconÆança e os populismos. O papel dos
partidos políticos é fulcral porque sem
partidos não há democracia. Mas os
partidos têm de sair do seu autismo crónico
e nunca esquecer que a política serve, como
disse Hannah Arendt, para resolver os
problemas das pessoas. A governação, além
de mais inteligente, tem de ser defendida
quer das pressões populistas de curto
prazo, ampliadas pela democracia directa
das redes sociais, quer dos lobbies e
interesses especiais, primando pela
transparência e pela prestação de contas. A
democracia tem falhas e se elas não forem
resolvidas, modernizando a governação,
instalando um novo “software cívico” capaz
de atrair e mobilizar os cidadãos, o sistema
deteriora-se.
Finalmente, é necessária uma visão
integradora capaz de mobilizar para a
mudança e para as reformas que são
indispensáveis, como a da economia e a do
Estado. Todos sentimos a necessidade de
fazer estas reformas, mas no fundo há uma
grande falta de crença sobre a capacidade
de as fazer. Só uma visão estratégica que
mude a percepção das coisas e mobilize as
pessoas pode dar sustentabilidade a todo o
sistema político e evitar surpresas
desagradáveis no futuro.

PAULO PIMENTA

Repensar o modelo de
desenvolvimento económico

e melhorar o sistema


político são os desafios
cruciais que o país enfrenta
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