Folha de São Paulo - 03.10.2019

(C. Jardin) #1

aeee


poder


A14 Quinta-Feira, 3DeOutubrODe2 019


Diasatrás fiz uma análise do
discursodeBolsonaro na ONU


erecebi umcomentário inte-
ressante.Osujeitodizia que
minhaavaliação estavaOK,
mas tinha um problema.Eu
parecia suporqueoBrasil vi-
viauma situaçãode“norma-
lidade democrática”. Termi-


navadizendo acharcomple-
tamente “anormal” qualquer
pessoaque haviagostado da-
quele discurso.
Curiosa visão de pluralismo
políticocontidanestaideia:
quem discorda de mim não é


apenas alguém que pensa e
defendevalores diferentes dos
meus.Ésimplesmenteanormal.
Oque poderia ser apenas
mais uma besteira, típicada
internet,mepareceuumsin-
toma do Brasil atual. Na ou-


trasemana, escrevialgoso-
breasrelações entreExecu-
tivoeCongressoefuirepre-
endido,por umvelho amigo,
dizendo queosimplesfato
defazeranalisepolítica, no
Brasil de hoje, sem “denunci-
aretomarposição”,erauma
“rendiçãoàbarbárie”.Seria
omesmo que analisaroqua-
dropartidário na Alemanha
àépocada ascensão doFüh-
rer, nos anos 1930.
Éisso.Fácil,fácil,escorrega-
mos paraamesmíssima intole-
rância que imaginamoscom-
bater.Nos tornamos uma peça
do tribalismovazio que marca
nossas democracias. Asguer-
rasculturais dãootom,oní-
veldeparticipação dos cida-
dãosexplodiuecom eleaorga-
nização de interessesevisões

de mundo, noqueantes cha-
mávamos de “sociedadecivil”.
Ofatoéque vivemos um du-
alismo.Nomundo daretórica
edas redes sociais,reinaafan-
tasia sobreacrise brasileira.
Aprópriapalavra“crise”,de
tãoabusada, perdeuosentido.
Há um poucode tudo nes-
te mundo curioso.Narecente
decisão doSTFdisciplinando
as alegações finais,emproces-
so scomréus delatores, ligen-
te bacana dizendo que nossa
Suprema Cortehavia transfor-
madooBrasilnuma“ditadura
dosdelinquentesdetodo tipo”.
De umteóricogovernista,li
aprovocaçãotola:“A indanão
será mesmoahoradefalarem
umcaboeumsoldado?”.Dola-
do que perdeuaeleição,ocon-
teúdoéfarto. Osteóricos do

“riscodemocrático”cadavez
maistorcemparaque esque-
çamsuas previsõesdeque o
nosso hinoseria trocado pela
Giovinezzifascistaecamisas
negras desfilariam, aocair da
tarde, pela orla de Copacabana.
No mundoreal da política,
ocenárioéoutro. Vivemos um
quadrotípicodanormalida-
deàbrasileira.
Vimos seformar uma mai-
oriareformista,noCongres-
so Nacional, que desdeaPEC
doteto,em 2016 ,obtevevitó-
riassistemáticasque chega-
rama 353 e 345 votos, na Câ-
mara, nasrecentesvotações
dareformadaPrevidênciae
MP da Liberdade Econômica.
Este é, porcerto,nosso princi-
pal ativopolítico.
Mas házonas de sombras à

frente.Não avançamosnada
noplano dareforma dasins-
tituições políticas.
Ainda em junho,oTSEentre-
gouaRodrigoMaia um projeto
dereforma que previa aintro-
dução dovotodistrital já para
as eleições de 2020 .Coordena-
do pelo ministroLuísRoberto
Barroso,oprojetoerainteli-
genteefactível, mas ninguém
deu bola.Estávamostodos pre-
ocupadoscoma“barbárie”do
último tuítenão sei de quem,
enquantooCongressoapro-
vavaum afrouxamentogeral
doscontroles sobreouso do
dinheiropúbliconaseleições.
Acho curiosoquando escu-
tofalar no “projetobolsona-
rista”paraopaís. Imagina-se
quefrases soltas,ditas aqui e
ali, possam funcionarcomo
uma ideia de país. Confesso
nãovernada disso.
Este éumgovernode baixo
consenso emrelaçãoasua pró-
pria agendaeconômica delibe-
ralização, eisso ficaclarocom
as indefiniçõesquantoàrefor-
ma tributária,ainexistência
de um projetominimamente
consistentedereforma doEs-
tado,afalta de apetitepolíti-

coparaaprovar pautas que o
própriogoverno apresentou,
comoaautonomiadoBanco
Central, eàlentadesidratação
aquefoisubmetidaareforma
daPrevidência.
Talvez acaraverdadeirado
Brasil de hojeseja mesmoes-
ta:adeumpaís que depende
de um leilão do pré-salpara
fechar ascontas, não iráin-
vestir virtualmentenada, ano
quevem,efala emfazeruma
reformatributária semredu-
zir umcentavosequerdacar-
ga tributáriade 35 %doPIB.
Oquefaltaéexatamenteum
“projetonacional” aogoverno.
Aúltimavezqueensaiamos
algoparecidocomissofoi à
épocadoprograma deesta-
bilizaçãoeconômicaerefor-
ma doEstado,nos anos 1990.
Projetoporcertoinconcluso.
Imaginarqueas oraçõesda
ministraDamares,os tuítes
da turmapalacianaeaspa-
lestrasmetafísicas de nosso
chanceler-filósofoexpressem
um “projetodepaís” nãopas-
sa de umafantasia divertida.
Estamosmuitolongedisso,
neste país em queanormali-
dadebeiraaotédio.

Oque faltaaogoverno bolsonaro éexatamenteum‘projetonacional’



  • FernandoSchüler


Professor do insperecurador do projetoFronteiras do Pensamento. Foidiretor daFundação iberêCamargo


Normalidadeàbrasileira


|dom.ElioGaspari, Janio deFreitas |seg.CelsoRocha deBarros |ter.Joel PinheirodaFonseca |qua.Elio Gaspari|qui.FernandoSchüler |sex.ReinaldoAzevedo|sáb.Demétrio Magnoli


Sínododaamazônia
entreviSta
PauloSueSS



  • Paula Sperb


PortoalegreOpadre alemão
Paulo Suess, 81 ,chegou ao Bra-
sil hámais de 50 anos sem sa-
berfalar nadade português.
“Eu queria ir paraonde esta-
vamospobres.Agentevia pe-
la televisão”,relembra.
Passou meses emBelém pa-
ra estudaroidiomaepartiu
paraaregião doBaixoAma-
zonas, onde permaneceude
1966 a 1976 .Lecionouteologia
em Manaus,atuou naPastoral
daTerraeno Cimi (Conselho
Missionário Indigenista),on-
deéassessorteológico.
LigadoàDiocese deAugs-
burgo(Alemanha),estáce-
dido paraaArquidiocesede
SãoPauloecostumacelebrar
missas naParóquiaSantaRita
de Cássia, nacapital paulista.
Suessajudouaelaborar o
documentodetrabalho do Sí-
nodo paraaAmazônia,evento
convocado pelo papaFrancis-
coquereunirá 250 bisposno
Vaticanoapartir de domingo
( 6 ). OdocumentodaRepam
(RedeEclesialPan-Amazôni-
ca)foi elaboradoapós serem
ouvidos indígenas, ribeiri-
nhosemoradores daregião
—compostapor nove países.
Oteólogointegratambém
acomitivabrasileiranoeven-
to.Suess, assimcomoopapa,
defende queaigreja precisa
“ter umrostoindígena”. Para
isso,precisa ampliar suaatu-
ação naregião.“Temque pas-
sar de uma igreja de visitapara
uma igrejadepresença”, diz.
Apresença, porém, só será
viávelcomoordenamentode
indígenaseribeirinhos,per-
mitindoosacerdócio aoscasa-
dos.As mulherestambém pre-
cisam serreconhecidas,com
aordenação de diaconisas.
Os ritos da igreja podem
incluir rituais indígenas,de-
fende ele.Ainclusão pode
serapartirtambém dasves-
timentas. “Não precisa ser
ocolarinhoromano.Porém
nãovaiacontecer de hoje pa-
ra amanhã.Éumlongopro-
cesso”,diz.



  • QualosignificadodoSínodo
    para aAmazônia? Aprópria
    palavraindica. Sínodo quer di-


‘É precisouma igreja com rosto


indígena’, diz teólogo sobre sínodo


Vaticanovai discutir presença católica na amazônia; padredefende ordenar índioseribeirinhos


zer“caminhar juntos”[dogre-
go,synsignificajuntoseho-
dos significa caminho]. Preci-
samosresolver questões em
conjuntoescutandoopovo.
Ométodo pastoral do papa
Franciscoéescutaropovo.
Os bispos são mestresediscí-
pulos. Como discípulos,pre-
cisam escutar.Nuncasefez
umaescutatão amplacomo
paraesse encontro. Se escu-
touosíndios, os ribeirinhos,
os moradores das áreas das
dioceses dos nove países pan-
amazônicos,forammilhares
de pessoas ouvidas.

Por queaIgreja quer estar
mais presentenaAmazônia?
Existeumproblemageográ-
fico, da distância dascomu-
nidades,eumproblema pas-
toral. Aigrejachegaaesses
lugares àsvezesumavezpor
anoefaz uma missa. Em al-
guns lugares,temapalavra
deDeus,mas nãotemaeuca-
ristia. Semaeucaristia, não é
possívelconstruirumacomu-
nidade cristã.Jásediscute ese
fazoapelo paraqueexistam
sacerdotesque vivam lá, que
possamser casadoseque pos-
samcelebraraeucaristia. Is-
so vaiser discutido no sínodo.

Isso acabaria comoceliba-
to?Isso não quer dizer que

não haverá celibato.Mas que
nesseslugares distantes pode-
riamtersacerdotescasados.Já
falamos nisso há 50 anos.Onde
há essas lacunas, as seitas que
nãotêm cuidadocomacultu-
ra indígena sefazempresentes.
Sãoelementos estranhoseco-
lonizadores em muitoscasos.

Comoaigreja pode estar
presente eaomesmotem-
porespeitar os ritos indíge-
nas?Temque passar de uma
igreja de visitaparauma de
presença.AAmazôniatem
uma enorme diversidade.Os
povosindígenastêmsuas cul-
turas, seus direitos decelebrar
seus sacramentos.Éumgran-
de desafio para aigreja bus-
caroequilíbrio entreessa di-
versidade.Éprecisoconstruir
uma igrejacomrosto indíge-
na.Opapatambém disse isso.
Essespovos têmseus ritos,
como os de nascimento, ado-
lescênciaecasamento. Aigre-
ja poderia assumir muitosele-
mentos dos ritos dos indíge-
nas paraacelebração.Inclu-
sivenas roupas.Avestimen-
ta não precisa serocolarinho
romano,podeser outro sinal
distintivoquecaracterizaoin-
dígenacomo padre.
Porém nãovaiacontecer de
hoje paraamanhã.Éumlon-
goprocesso.

Qualéopapeldas mulheres
nessecontexto debusca por
inclusão?Comotempo,vai
ocorreroque já acontecena
sociedade civil paraigualar
as mulheres.Temos ainda di-
ficuldades. Oprimeiro passo
seria ordenarcomo diaconi-
sas [figuradiferentedadopa-
dre, mas que podeexerceral-
gumas funções limitadas] as
mulheres que játêmumpa-
pelpastoral.Nesseslugares
distantes, as mulheres não
ficam limitadas àstarefasde
limpeza, mas [atuam nas] de
reza, deconvocação.
Aigreja não pode menos-
prezar esse potencial das mu-
lheres.Ordená-lascomo dia-
conisaséumpasso possível,
que depende dos bispos. Em
torno do sínodo,jáseestáfa-
zendo umterror sobrehere-
sia. Um setor daigrejaestádi-
vulgando,mas nãotemnada
disso.Naépoca deJesus,aso-
ciedade erapatriarcal. Nem
eleconseguiria mudar isso.
Levatempo,mas precisa ser
enfrentado.

Por queaecologiaéuma pau-
ta da igreja?Tudo estáinter-
ligado.Osínodo tratadavida
edoterritório dos povosin-
dígenas.Defendemos os in-
dígenaseajudamosquando
estãoameaçados. Como sa-

bemos, estão ameaçados. A
florestaéinvadidaporfogo,
madeireirasevacas.Anatu-
reza éexplorada pelosexage-
rosdacivilização.Precisamos
de umareeducação.
Nossa civilizaçãogastamais
do que estáàdisposição,ve-
mosamudançaclimática,as
geleiras derretendo.Nossosfi-
lhosvãoter que enfrentar es-
sa realidade no futuro. AAma-
zôniaéimportante parapre-
servaravida.

Ser cristão hojeédefender o
ambiente?Já tivemos mui-
tasCampanhasdaFraterni-
dadesobreecologia,água,
floresta.Nãoseseparamais a
vidaterrestreetranscenden-
tal. Anaturezaéumpresen-
te queDeus nos deu. Opapa
escolheuonome deFrancis-
co,que sefezpobrecomo os
pobres, defendeuanatureza
eépadroeirodaecologia.Se
queremosavida, nãopode-
mosdestruiranatureza.

Osínodotemsidoatacado em
umcontexto político em que
opresidente Bolsonarocriti-
couocaciqueRaoni na ONU
etem prometidorevisar de-
marcações indígenas.Oque
pensadisso? Obispo deSão
GabrieldaCachoeira(AM),
dom Edson [Damian], decla-
rourecentementequeodis-
curso[deJairBolsonaro] na
ONUfoiumavergonha para
todos nós.Defato,foi.
Odesenvolvimentoàcus-
ta dadestruição da natureza
eexpropriação dasterras in-
dígenaséinsustentável. Apro-
messa de não demarcarnovas
terras indígenaséaté incons-
titucional.O“dia dofogo”es-
tava marcado para queimar a
Amazônia.Ogovernosabia e
nãofeznada.Ofogoera pa-
ralimparaáreaecolocar o
gado.Issoatingetambém os
consumidoresdegado,preci-
samosrepensar nossos hábi-
tosdealimentação.

Os ataques ao sínodo também
partemdaprópria igreja, de
uma alaconservadora.Oque
pensadesse movimentoque
acusaopapa de heresia?Es-
se mau entendimento, pelo
quevejo,partedegentejubi-
lada, jáfora docargo. Partede
genteque se fixou emcoisas
de um séculoatrás, coisas que
aprenderamnopassado.Ate-
ologia pastoral latino-ameri-
cana àsvezesfoi perseguida
na Europaemal-entendida.
Podemostentarconscien-
tizarcompalavrasegestos.
Odiabo estásempreatrás
quandoaconteceumacoi-
sa boaegrande[comoosí-
nodo], semprefoi assim.Re-
zopelo papaFranciscopara
que não perca acalma. Elefoi
eleito porDeus paranos gui-
ar nestemomento.

$
Vaticanorealiza o
Sínodo daAmazônia

Oque éSínodo é
umareunião do episcopado
da Igreja Católicacomo
papa em que são discutidos
assuntos específicos e
pré-determinados, que
auxiliarão nagovernança
da instituição.NoSínodo
da Amazônia,aigreja deve
tratar principalmenteda
evangelização naregião,mas
temas ligadosàproteção
de povos indígenaseao
meio ambientetambém
devemser abordados

Quando Oeventoreunirá
250 bisposno Vaticano a
partir destedomingo(6),
comencerramentoprevisto
para27deoutubro

Bruno Santos/Folhapress

PauloSuess, 81
Nascido em Colônia
(Alemanha), veio paraoBrasil
nos anos 1960. Doutor em
teologia, atua na Diocese
de São Pauloeassessora
oConselho Missionário
Indigenista(Cimi)eaRede
Eclesial Pan-Amazônica.
Autordelivroscomo “Projeto
Missionário” (Paulinas, 2019)
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