Folha de São Paulo - 03.10.2019

(C. Jardin) #1

aeee


ilustrada


C8 Quinta-Feira,3DeOutubrODe 2019


OúltimoTarantino,“Erauma
Vezem... Hollywood”,repercu-


tiu em mimcomo uma máqui-
na dotempoeme jogoudevol-
ta aumpassado umpoucoes-
quecidoedoqual suspeitoque
tenha sido mais importantedo
que eucostumo admitir —im-
portante, digo, paraminhafor-


maçãoetambém paraatrans-
formação de nossa cultura.
Acidade de Los Angelesdo
filmeéde 1968 e 1969 ,quan-
do SharonTate foiassassina-


da pelos malucos da seitade
CharlesManson.
EucomeceiaviajaraLos
Angelesem 1966 .Acaba-
vadecasarcomuma mu-
lher nascida em Thousand
Oaks, narota 101 ,naaltura
de Malibu.Eela trabalhava
na indústriacinematográfica,
como dublêecomoatriz(cu-
riosamente,ofilme deTaran-
tinoéahistóriadeumdublê).
Quando cheguei aos EUA, em
1966 ,omovimento pacifistae

hippie,contraaguerra no Viet-
nã, já estavapor toda parte,e
sobretudo na Califórnia — 1967
seriao“summer oflove”(verão
do amor)emSanFrancisco.
MesmoemNovaYork, embo-
ra commenos tiaras de flores,
os simpatizantesdoAmerican
Communist Party(e,maistar-
de, dos BlackPanthers) eram
atravessadospela ondahip-
pie—amúsica, um estilo (do
cabeloàroupa),uma simpa-
tia por vidascomunitárias e

errantes e, aquémdoseven-
tuaistextosmilitantes, uma
literaturacomum:adagera-
çãobeat,dadécadaanterior.
Minhamulher não erahip-
pie, mas,quandoaconheci,
emRoma, em 1965 ,estavacom
“Howl” (Uivo),deAllen Gins-
berg, embaixodo braço.
Alguns livros dos beats estão
aindanaminha listados 200 li-
vros que seria bomterlido pa-
ra não morrer idiota —além de
Ginsberg, GregoryCorso,Fer-

linghetti,Kerouac, Burroughs.
Eles me transformarametrans-
formaramomundo. Como?
Porquê? Paraentender,tal-
vezseja bom se perguntarpor
que, desde os anos 1960 ,oship-
pies (herdeiros dos beats) eram
também desprezados ou pior
(como mostraTarantino).
Alguém diráquefoipelo
uso das drogas,mas, naque-
les anos, as drogas(sobretu-
do anfetaminasebarbitúri-
cosmisturados, mastambém
LSD,mescalinaemaconha)
já corriamsoltasnas casas dos
ricosedospoderosos.
Outrosdirão quefoiosexo,
explícito, livre epromíscuo. Lu-
iz Felipe Pondé, nestamesma
página, um mês atrás,comen-
tandoofilme deTarantino,foi
nessa direção, imaginando que
os hippies escandalizassem a
América“adulta”comseuscos-
tumes,livrescomoaproposta
de sexo oral por uma desconhe-
cida que pediucarona.
Talvez essescostumes “libe-
rados” parecessemrevoluci-
onários nas áreas rurais do
centro edosul dosEUA.Mas,
nas grandes cidades decosta
acosta,em 1966 ,não preci-
savados hippies parasoltar
osexodeninguém.Asnoita-
das nas mansõesangelinas,
nos apês deSanFranciscoou
nos lofts doVillagedeNova
York podiamfacilmenteenru-
bescerumbeat ou um hippie.
Aliberação sexual dos anos
1960 ,pensando bem,foiuma
bola de neve que vinharolando
desdeofimdaSegunda Guerra
Mundial.Talvez porrazões dar-
winistas, depois decada triun-
fo da morte,omundo sempre
se torna saudavelmentedevas-
so,aomenos por umtempo.

“História de O”foipublica-
do naFrançaem 1954 .Afes-
tanaFactorydeAndyWa-
rholcomeçouem 1962 .E,em
1966 ,existiam, em Los Ange-
les, saunas gaysehéteropara
sexocasualepromíscuo,que
nãotinham nadaaver como
movimentohippie.
Quando, em 1977 ,abriu Pla-
to’s Retreat em Nova York,opri-
meiroclube deswing “oficial”,
frequentado pelaclasse média
altaepor celebridades, os clien-
tesnão vieram deWoodstock.
Em suma,oque incomoda-
va (efoimarcante) na onda
beatehippie não eraafacili-
dadedosexonemadasdro-
gas.Oque era, então?
Pois é, osmilitantes políti-
coseuropeus ou americanos
diziam que os hippieseram
cúmplicesdo“sistema” por-
que viviam graças às suasfa-
lhas. Ou seja, eramcomo pes-
soas que quisessemrevolucio-
narainjustaproduçãoedis-
tribuiçãodos alimentos,mas
se satisfizessem dosrestos en-
contrados nas lixeiras dosres-
taurantes de luxo. Defato,os
hippiesviviam nas frestas. Por
issomesmo,emtese, não deve-
riam incomodar ninguém(sal-
vooExército, queprecisavade
soldados paraoVietnã). Qual
era, então, oescândalo?
Simples: os beatseoship-
pies não sonhavamcomas
coisascom as quais sonha-
va aimensamaioria da
classe média americanaeeu-
ropeia: acumulação de patri-
mônio,consumo,ostentação...
Nãotinhamumprojetode
sociedade paratodos. Apenas
tinhamvontade de desejar di-
ferente.Eofizeram, ou pelo
menostentaram. Nãoépouco.


  • Contardo Calligaris


Psicanalista, autor de ‘Hello,brasil!’ecriador da série ‘Psi’ (HbO)


noitadas nas mansões deLosangeles podiamenrubescer um beat ou um hippie


Oespíritode 1966


LucianoSalles


|DOM.FernandaTo rres, DrauzioVarella|SEG.LuizFelipe Pondé |TER.João PereiraCoutinho |QUA.Marcelo Coelho |QUi.Contardo Calligaris|SEX.DjamilaRibeiro|SÁB.Mario Sergio Conti


Afinidade entre atores compensa viés teatral defilme


Paulo betti divide atuaçãoedireçãocomeliane Giardini na adaptação de‘a Fera na Selva’,doescritor Henry James


cinema
AFeranaSelva




brasil, 2017. Direção: Paulo betti,
eliane GiardinieLauroescorel.
Com: Paulobettieeliane Giardini.
12 anos.estreia nesta quinta(3)



  • NeusaBarbosa


Quase 30 anos apósdividirem
acena numa adaptaçãoteatral
da novela “A Fera na Selva”, de
Henry James,PauloBettieEli-
ane Giardini trouxerampara
ocinemaotextoelegantedo
autor americano naturaliza-
do inglês. LançadonoFestival


de Gramado em 2017 ,somente
agoraofilmechegaaocircuito.
Adaptaçõesliterárias sem-
precorremoriscodeaspa-
lavras, por mais belas que
sejam, solaparemoritmo
da transposição ao cinema.
Nada melhor,portanto, nes-
te mergulhonumacascatade
frases elaboradas, do queter
aparceriadoexímio diretor
defotografiaLauroEscorel,
creditadotambémcomaco-
direção,responsávelpor cri-
ar nas imagens umaatmosfe-
ra decaixinha de música nos-
tálgica. Esteclimaéreforçado
pela direçãodearteprecisade

RonaldTeixeira, emoldurando
um dueloemque as emoções
são mantidas sobcontrole.
João (PauloBetti) eMaria
(ElianeGiardini) são dois pro-
fessores que seconheceram
por acaso,hámuitos anos.
Naqueleencontroinaugural,
ele lherevelou seu segredo —
julgava-sepredestinadoaum
acontecimentoterrível.Acon-
fidênciaauma desconhecida,
umraro impulso, lançaosdois
numa amizade que se estende
pelosanos,tornandoaespera
pelafatalidade umfardoem
comum.Masnãoéomesmo
opeso assumido porcada um.
Decertamaneira,ofilme
se aproximada obra deJúlio
Bressane,outrodiretor apai-
xonado pela elegânciaverbal
de uma literaturaque não pro-
põecaminhofácilaoespecta-
dor.Com um narrador onisci-
enteque preenchelacunas, é
umrelato emque, aparente-
mente,não muitoacontece, a
não serapassagem dotempo
eoenvelhecimentodos pro-
tagonistas, nestaestranhare-
laçãoàqualfaltaumafaísca.
Estejogodenão aconte-
cimentos, mantido emfogo
brando por diálogos umtanto
cifrados, pode afastaropúblico
maisapressado. Averborragia
eovincoteatral, aquitãoàto-
na, nãorarodificultamoaces-
so às emoções —maséeste, afi-
nal,odilemacentral,constru-
ídocomafinco por doisatores
de umaafinidadeexemplar.

ElaDisse, Ele Disse
*****
brasil,2019. Direção: Claudia
Castro. Com: Maisa Silva,Fernanda
GentileMariaClara Gueiros.
12 anos. estreia nestaquinta(3)


  • Sérgio Rizzo


Espectadoresveteranostal-
vezselembrem dacomédia
romântica“EleDisse, Ela Dis-
se” ( 1991 ), em queKevinBacon

eElizabeth Perkins interpre-
tamjornalistas que pensam
bem diferente—umconser-
vador,aoutraliberal. Ape-
sar disso,elesseapaixonam,
mascada um enxergaàsua
maneiraoque lhes ocorreu.
Emboraostítulos sejam se-
melhantes, esse pontodepar-
tidaguarda apenas ligeirarela-
çãocom “Ela Disse, Ele Disse”
—que, aliás, poucotemadi-
zeraespectadoresveteranos.
Oterrenotambéméodaco-
médiaromântica,mas os per-
sonagens são adolescenteseo
público-alvoestáemfaixa etá-
riarestritacujopré-requisitoé
considerarquevale apena ir
ao cinema paraver Maisa Silva.
Aex-estrela de “Carrossel”
já esteveemcartaz nesteano
com“Cinderela Pop”,baseado
em best-seller dePaulaPimen-
ta,emquefaziaaprotagonis-
ta .Destavez, ainda queseja o
principal nome do elenco, seu
papelésecundário e, por boa
partedahistória, antipático.
MaísafazJúlia, aluna popu-
lar,mas de poucas luzes, em
umcolégioconduzidocom
mão deferropela diretora
(Maria ClaraGueiros), cuja au-
toridadeésuavementedesafi-
ada por uma professora(Bian-
ca Andrade).OficantedeJú-
lia éumencrenqueiroqueto-
dostemem (Matheus Lusto-
sa), líder da pequenagangue
que praticabullyingnaescola.
Asatenções,noentanto,se
voltam paradois novosalunos:
ela, sensível,inteligenteeretra-
ída (DudaMatte); ele,expan-
sivoesedutor (MarcusBessa).
Oraio do amorcaisobre eles.
Baseado em livrodeThali-
ta Rebouças(que assinaoro-
teirocomTati Adão),aestreia
no cinema da diretoraClaudia
Castroprocuracapturaropú-
blicojovemcomuma narrati-
va ágil querecorreamúsicas
para fazeracosturadatrama
—equeterminacom um nú-
Eliane GiardiniePaulo Betti em‘A Fera na Selva’ Divulgação mero musical.Sim,deMaisa.
Free download pdf