Adega - Edição 160 (2019-02)

(Antfer) #1

Edição 160 >> ADEGA 77


nece muito ácido apesar dos séculos”. Esta, con-
tudo, não foi a primeira vez que o vinho precisou
mudar de recipiente. Tem-se notícia de que esse
tipo de procedimento foi feito pelo menos outras
duas vezes. A última havia sido em 1718.


Um sobrevivente
Quem acha que o vinho possa ter sofrido durante
esse processo (com tantas tecnologias disponí-
veis, ele sequer teve contato com o ar), nem ima-
gina pelo que ele precisou passar para chegar até
os nossos dias. Assim como o “Banca Monte dei
Paschi di Siena”, o vinho de Estrasburgo superou
diversas crises.
Uma das mais graves foi o incêndio de 1716
que assolou todo o Hospices. A adega subterrânea
com seu teto de tijolos abobadados, porém, mila-
grosamente permaneceu intacta. Anos mais tarde,
eclodiu a Revolução Francesa. As terras da igreja
foram expropriadas e o Hospices perdeu grande
parte de seus vinhedos. Os vinhos da adega, mais
uma vez, sobreviveram.
Com menos terras para cultivar e com foco na
parte médica – que foi paulatinamente deixando
de receitar vinho como remédio –, o hospital tam-
bém foi deixando de lado a adega. Nesse tempo,
vieram ainda sucessivas guerras, especialmente as
I e II Guerras Mundiais. E, ainda assim, aquela
barrica de 1472 sobreviveu intacta.
Até que, em 1994, já totalmente sem vinhe-
dos, a adega foi abandonada. Os barris de madei-
ra degradaram-se rapidamente, com os menores
começando a apodrecer, e os maiores secando.
Devido à falta de resultados e sem perspectiva de
desenvolvimento, a adega estava condenada. As-
sim como o vinho. Porém, uma nova política de
gestão do Hospices procurou restaurar o legado
vínico do local, transformando-o em um museu,
abrindo espaço para visitações e venda de vinhos
novamente produzidos lá. Agora, a adega é uma
fonte de renda para o hospital.


Três vezes apenas
Há alguma perspectiva de esse vinho histórico ser
provado? Na verdade, não. Durante seus quase
550 anos de vida, em apenas três ocasiões ele foi
degustado. A primeira foi em 1576, para celebrar
um acordo de assistência mútua com a cidade de


Zurique, na Suíça. Na época, o vinho já tinha
impressionantes 104 anos. A prova seguinte ocor-
reu em 1718, dois anos depois de o incêndio ter
destruído o hospital, para celebrar a reconstrução
do Hospices (agora já se passavam 246 anos da
safra). E, por fim, em 1944, quando a cidade de
Estrasburgo foi libertada na II Guerra pelo gene-
ral Philippe Leclerc de Hauteclocque, que teve a
honra de degustar um vinho de 472 anos de ida-
de. O general, todavia, morreu apenas três anos
após e não poderá dizer se o vinho evoluiu desde
a última vez que o provou. E assim segue a lenda
da adega do Hospices de Strasbourg, até que um
novo fato histórico seja razão para que alguém
deguste o vinho mais antigo do mundo.

Barrica contendo o vinho
“bebível” mais antigo do
mundo precisou passar
por reparos recentemente
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