Eu e as Mulheres da Minha Vida

(Carla ScalaEjcveS) #1

TRINTA E SETE


No domingo Zé levou Quico ao futebol. Zé queria fazer tudo certo, queria que o filho não
pudesse dizer nunca que ele não havia sido um bom pai. No fundo, Zé preocupava-se com o
momento em que Quico percebesse que, se os pais estavam separados, era porque ele tinha
enganado Graça e ela sofrera muito com isso mas não lhe perdoara a traição. Por agora, Quico
pensava apenas que o pai saíra de casa por causa da mãe. Afinal, ela é que estava zangada,
certo? Esta perspectiva, embora involuntária — Zé nunca lhe dissera exactamente que a culpa
era de Graça — e injusta, não deixava de ser reconfortante, mas um dia Quico haveria de querer
saber o motivo que levara a mãe a zangar-se e, então, ele passaria a ser o mau da fita.
Zé tinha um plano: preparar o terreno para que Quico não viesse a odiá-lo nunca. Enganar a
mulher, ser apanhado, separar-se, sair de casa, eram coisas que aconteciam. Desleixar-se no
acompanhamento do crescimento do filho é que seria imperdoável.
Zé não percebia nada de futebol. Para ele, futebol não era mais que vinte e dois tipos a correr
atrás de uma bola que ganhavam num ano mais do que ele em toda a sua vida. Inclusivamente,
nos almoços de amigos, se Zé tentava emitir uma opinião sobre o assunto, mandavam-no calar-
se. Para dizer a verdade, nem sequer gostava de futebol, mas tinha a certeza de que levar o filho
a ver um Benfica/Sporting fazia parte do projecto de qualquer pai decente. Eram esses
momentos que ficavam no imaginário de uma pessoa e um dia mais tarde, quando Quico
invocasse a infância, lembrar-se-ia certamente com alguma nostalgia daquela noite na Luz com o
pai.
Quico assistiu ao jogo fascinado com a festa das bancadas. O estádio esgotado e vibrante de
entusiasmo parecia ganhar vida própria com os cânticos de milhares de gargantas e os
movimentos de massas em ondas que cumpriam rituais divertidos. Zé viu Quico boquiaberto
com o chorrilho de asneiras que saíam da boca de vulgares pais de família transfigurados com
as decisões do árbitro, a incapacidade dos defesas para parar Jardel ou um falhanço
desconcertante de Nuno Gomes frente à baliza vulnerável do Sporting.
Quico parecia estar a reagir relativamente bem à separação dos pais. O único sinal
preocupante de instabilidade emocional foi o comportamento um pouco mais agressivo na
escola. Desde que Zé saíra de casa, Quico esmurrara alguns narizes sem piedade. Descarregava
a sua frustração em cima dos colegas menos avisados que se permitiam provocá-lo em quezílias
normais de recreio. Em casa, Quico tornara-se mais desafiador, contestando a autoridade da
mãe, mas Graça sabia como lidar com ele. Impunha-lhe disciplina em doses temperadas com a
tolerância necessária para levar a água ao seu moinho. Além disso, Graça lembrou a Zé que o
papel do pai não era deixar o filho fazer tudo aquilo de que gostava e que ele tinha a obrigação
de a ajudar na orientação do filho, de forma a que Quico não sentisse que era melhor estar com
o pai porque nessas alturas podia quebrar as regras habituais. Por outras palavras, Graça não

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