TRINTA E OITO
Zé ouviu a campainha da porta e foi abrir a pensar que ia dar com Sara nua, só com uma
gabardina em cima do pêlo para não ser presa na rua, ou a sacar as meias de vidro com a saia
levantada e os sapatos na mão e a entrar-lhe pela casa dentro a dizer que estava a morrer por
uma queca, que era o que ela dizia nestas ocasiões. Mesmo ocupando todo o tempo do dia a
fazer cálculos de cabeça sobre as suas possibilidades com Graça — já não lhe telefonava de
hora a hora desde que ela deixara bem claro que não queria que ele fizesse isso, porque
percebera que era melhor dar-lhe algum espaço, dar-lhe tempo para lamber as feridas e
começar a ter saudades dele —, mas ainda que Zé andasse tão desasado por causa de Graça que
nem conseguia trabalhar em condições e o seu desleixo no banco já tivesse chegado aos ouvidos
da administração, havia estes momentos preciosos com Sara que o ajudavam a esquecer Graça e
a acreditar que, afinal de contas, a vida não era tão má como às vezes parecia.
Foi abrir a porta com um sorriso nos lábios e antevendo uma boa noite frente à lareira.
— Miguelinho!
— Então, meu, tudo fixe?
— Tudo bem — disse, sem conseguir disfarçar uma pontinha de desilusão. — Entra.
— Posso dormir cá?
— Donde é que tu vens, pá?
— Estive a trabalhar.
— Mas estás com algum problema?
— Não. — Abanou a cabeça com uma expressão de indiferença.— Que eu saiba, não.
— Ah, bom. Como me apareceste assim, de repente...
— Vim ver como estavas.
Um ponto a favor de Miguelinho. Parecia inacreditável mas, de todos os amigos de Zé,
nenhum se dera ao trabalho de lhe telefonar desde que se separara de Graça. Apenas Tó, claro,
mas esse acompanhara a crise desde o início. E aqui estava Miguelinho em pessoa a bater-lhe à
porta. Não telefonara, viera ter com Zé para saber dele. Curiosamente, se lhe tivessem
perguntado qual dos amigos o procuraria em último lugar, Zé teria dito sem hesitar que seria
Miguelinho. Mas não. Aparentemente, os outros andavam demasiado ocupados com as suas
vidas, com o trabalho e os filhos, para se preocuparem com Zé. Não que isso fosse desculpa,
pensava ele.
Teria de rever a sua opinião acerca de Miguelinho, até porque fora ele quem lhe apresentara
Sara pouco depois de Zé lhe ter dito que não estava interessado no negócio das garrafas de
areia.
Passaram a noite sentados à lareira a beber uísque e a fumar os charros de Miguelinho.
— Aquele teu negócio das garrafas coloridas?