Eu e as Mulheres da Minha Vida

(Carla ScalaEjcveS) #1

VINTE E SEIS


Zé passou a noite de Natal com os pais, reformados da Função Pública e com demasiado
tempo livre para se dedicarem a remexer nos problemas matrimonias do filho. Para ser justo, Zé
até nem tinha razão de queixa. Por ser filho único, tivera desde pequeno toda a atenção dos pais,
mas estes nunca foram excessivamente possessivos. Quer dizer, não tinham feito dele um cretino
mimado como muitas vezes acontecia com os filhos únicos. Zé habituara-se desde muito cedo a
ser responsável e a resolver os seus problemas sem a ajuda dos pais. Eles gostavam de ser
vistos como pessoas práticas, desembaraçadas e pouco dadas a meterem-se nas vidas alheias.
Mas um filho é sempre um filho e Zé teve de lhes explicar, tintim por tintim, a embrulhada em
que estava metido.
Foi uma noite triste. Estava triste porque, pela primeira vez em dez anos, não tinha a
companhia de Graça e de Quico e os pais estavam tristes por sentirem a falta do neto. Jantaram
cedo, abriram os presentes, viram um pouco de televisão e deitaram-se cedo.
Zé dormiu nessa noite em casa dos pais, no seu antigo quarto de solteiro, e isso transmitiu-lhe
uma sensação estranha, de vazio. Rebolou-se na cama madrugada fora, invadido por uma aflição
constrangedora, perdido em pensamentos perturbadores, analisando o simbolismo da situação.
Se tivesse dado um salto no tempo, de regresso ao passado, não teria sido diferente. E por que
raio, perguntava-se agora, os seus pais haviam mantido o seu quarto de solteiro exactamente
como ele o deixara, durante aqueles anos todos? Teria sido nostalgia ou falta de confiança, do
género mais-dia-menos-dia-ele-estraga-tudo-e-volta-cá-para-casa? Era, necessariamente, a
primeira hipótese, porque Zé sabia que os pais não o consideravam um idiota incapaz de tomar
conta de si. E, de qualquer modo, só aceitou a primeira hipótese pois, caso contrário, começaria
a sentir-se paranóico. Mas, mesmo assim, decidiu dizer aos pais, logo de manhã, que fizessem
outro aproveitamento do quarto porque, por muitas voltas que a vida dele viesse a dar, ele nunca
mais seria o rapaz que fora antes, decididamente, não voltaria a viver lá em casa e a ocupar
aquele quarto.
A ideia de ter um quarto onde vivera uma outra vida causava-lhe arrepios. Era como aquelas
pessoas a quem morria um familiar e deixavam ficar todas as suas coisas tal e qual como se
nada tivesse acontecido e continuavam a colocar o seu lugar à mesa durante as refeições. Não
era um comportamento nada saudável e, além disso, ele não tinha morrido, porra!
Quando falou disso aos pais, eles mostraram-se perplexos. Na realidade, nunca tinham
pensado no assunto dessa forma. Mantinham o quarto dele apenas porque a divisão não lhes
fazia falta e porque, ocasionalmente, podia ser necessário. Depois de ele ter saído de casa,
passara a ser um quarto de hóspedes, só que, simplesmente, não lhe tinham mudado a decoração.
Mas a observação de Zé devia ter sido suficientemente perturbadora porque, da vez seguinte
que os visitou, o quarto tinha sido transformado numa salinha de estar.

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