O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

etapas, nem sempre isentas de perigos, era certo, mas que lhe enchiam as
medidas. A outra, familiar, trazia-o de volta a casa, à mulher e ao filho, o bom
pai, o marido afectuoso, como se regressasse apenas de um longo dia de
trabalho. Regina queixava-se, o pequeno reclamava a sua presença amiúde, e
Nuno amava-os mas, que fazer, se não sabia viver de outra maneira? Pagava
as contas, garantia-lhes o bem-estar, mas não estava disposto a abdicar da sua
liberdade, em circunstância alguma aceitaria trocar o seu avião pela armadilha
de um emprego corriqueiro numa empresa segura. Contudo, já não lhe era
possível separar as duas vidas, apartar-se da família, do filho em especial. E,
lembrando-se da sua própria infância, obrigava-se frequentemente a recordar-
se de que não tinha o direito de privar André do direito de ter um pai presente
durante a sua infância. E, em última instância, foi este pensamento que lhe
salvou a vida naquela tarde aziaga, quando um impulso irreflectido o levou a
picar com o DO-27 sobre os guerrilheiros que se aproximavam
silenciosamente da base das NT para desferir um ataque de surpresa.


Os pilotos dos caças conheciam bem o estranho e perigoso efeito hipnótico
que os alvos em terra exerciam neles no momento de picarem e
descarregarem as centenas de munições das suas metralhadoras. Era como se
a vontade de atingir o objectivo, a necessidade frenética de acertar em cheio,
nesses segundos de extremo nervosismo, levasse o piloto a varrer do cérebro
toda e qualquer preocupação, como se entrasse num túnel e nada mais
interessasse. Perseguir o alvo, disparar, abater o inimigo, tornavam-se
necessidades tão obsessivas que, não tivesse o piloto a presença de espírito de
controlar a manobra e inverter o mergulho, e acabava por se despenhar,
embatendo no solo, desintegrando-se com o aparelho no núcleo da explosão
simultânea das bombas e do combustível, desaparecendo no súbito clarão em
que tudo terminava. Ora, Nuno, que não era piloto de caça e não estava
treinado naquela manobra vertiginosa, atirou-se de cabeça contra os
guerrilheiros no solo, perdendo momentaneamente a noção do tempo, do
espaço, enfim, de tal forma empenhado em desbaratar o inimigo e em atrair o
fogo deste para assim alertar a base adormecida, que, na sua fixação, nem se
apercebeu de que estava a segundos de se desfazer em terra. A visão turvada
com a trepidação, o estômago na garganta, aquela sensação de queda, de
imponderável tontura, quase a vomitar as tripas, o crepitar das balas sugerindo
o embater de gravilha na chapa, o silvo do motor aflito, deixaram-no num
estado de total alienação face ao perigo e à beira do desastre. Mas Nuno
desviou os olhos do pára-brisas por um segundo e, ao reparar na fotografia do
filho entalada no painel de instrumentos, viu André à sua frente a sorrir-lhe e

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