O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

teve o reconfortante pensamento de que era altura de voltar para casa. E, de
súbito, tomou consciência do pesadelo em que caíra. O que é que eu estou a
fazer?


Duas ou três balas simultâneas atravessaram o pára-brisas e passearam-se
num ricochete mortífero pelo interior da cabina. Outras foram desviadas pelas
pás da hélice. Nuno encolheu-se instintivamente com o susto e, sem mais,
puxou o manche com toda a força contra a barriga, como se o quisesse
arrancar na ânsia de levantar o nariz do avião, de evitar o choque fatal e fugir
da saraivada de metal que lhe picava o aparelho. O DO-27 reagiu com uma
rapidez notável, mas já estava tão baixo que ainda rasou a copa das árvores,
tocando-lhes com as pás da hélice, levantando uma nuvem de folhas à sua
frente como um corta-relva a roçar com a barriga e o trem de aterragem nos
ramos mais altos. Quis a sorte que não tropeçasse num ramo mais duro, que
raspasse apenas a folhagem e conseguisse safar-se pelo meio de um alvoroço
verdejante, desembaraçando-se da armadilha das árvores e ganhando altitude.


Habitualmente, os Dorniers eram utilizados pela Força Aérea Portuguesa
em missões de transporte ou de reconhecimento. Não sendo, de origem, um
avião vocacionado para acções de combate, podia contudo ser equipado com
foguetes de 37 mm, colocados debaixo das asas, e utilizado em acções de
ataque ao solo para dar apoio às tropas envolvidas em operações anti-
guerrilha. No caso do DO-27 de Nuno, não só não estava armado como nem
sequer era um aparelho militar. No entanto, a manobra agressiva foi suficiente
para semear o pânico entre os guerrilheiros e provocar uma reacção violenta
destes. De qualquer modo, eles não se preocupavam verdadeiramente em
fazer distinções entre aviões civis e militares, até porque, na sua maneira de
ver, podiam ser atacados por ambos e, por via das dúvidas, tentavam sempre
abatê-los, fosse qual fosse a versão. Para todos os efeitos, pertenciam ao
inimigo e eram mesmo para deitar abaixo.


No longínquo e esquecido sertão angolano não decorria propriamente uma
guerra de cavalheiros, ninguém se preocupava excessivamente com as
convenções internacionais, os direitos humanos e outras minudências do
género, ficando a observância da humanidade mais ou menos subordinada ao
livre-arbítrio de cada um, à consciência e princípios individuais. Não obstante
a disciplina militar variar consoante os exércitos em confronto, havia excessos
de parte a parte. O que não faltavam eram populações devastadas, cabeças
decapitadas e espetadas em estacas e, porque não?, aviões civis atacados.
Nuno já sabia como as coisas funcionavam por aquelas bandas,
evidentemente, até porque não foi a primeira vez que dispararam contra ele,
mas nunca estivera tanto na iminência de se despenhar como naquele

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