O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

concentrar. Depois, animado por uma coragem que lhe veio do desejo mais
forte de sobreviver, afastou da cabeça todos os pensamentos que o pudessem
perturbar e entregou-se às questões práticas que a emergência exigia.
Procedeu ao embandeiramento da hélice, de modo a evitar o efeito de
arrastamento e a perda de sustentação, alinhou o avião com a pista,
preocupado em manter a velocidade de melhor planeio, e esperou que o
aparelho planasse o suficiente para aterrar no sítio certo. Procurou a
trajectória descendente ideal, certo de que se falhasse aquela ladeira de
descida não teria uma segunda oportunidade para aterrar em segurança.


Em breve ficou encharcado e quase sem sentir as mãos, as orelhas, o nariz,
massacrados por um frio doloroso. O manche parecia pesar uma tonelada.
Ainda assim, Nuno continuou a segurá-lo com os dedos enfraquecidos
enganchados como garfos, com os braços esgotados, com as forças que lhe
restavam. Estava muito cansado, debilitado, a perder o discernimento, e,
apesar da teimosia, não sabia até quando aguentaria, não aguento muito mais
tempo,
pensou. Mas resistiu. Mesmo sem saber onde foi buscar a energia
necessária, continuou a lutar contra o frio, contra a chuva e contra as rajadas
de vento, empenhado em manter a velocidade de planeio e a corrigir a rota
sempre que o avião era desviado da trajectória.


A pista estava à sua frente e isso serenou-lhe um pouco os nervos. Sem a
perder de vista, Nuno foi enumerando mentalmente os procedimentos prévios
a uma aterragem de emergência, enquanto os executava. Desligar a bomba
auxiliar de combustível, passar o selector de combustível para
off , cortar a
mistura, desligar a ignição, pôr os
flaps nos dez graus. O DO-27
aproximava-se da pista rapidamente, mas também perdia altitude muito
depressa.


No Dornier, o pára-brisas dividia-se ao meio, sendo cada lado,
simultaneamente, as janelas das portas frontais, que se abriam na vertical. A
janela da direita tinha sido destruída pelas balas, o que provocava agora um
vendaval de chuva e vento no interior da cabina. O uivo ensurdecedor da
ventania misturava-se com o chicotear infernal das pontas dos cintos e das
correias e com o motim de papéis, plásticos, cartões e tudo o mais que não
resistia à deslocação furiosa do ar e se elevava num redemoinho caótico,
transformando a parte de trás da cabina numa confusão de objectos voadores.
Nuno reparou que ainda trazia os Ray-Ban postos e desembaraçou-se deles,
puxou-os para cima e prendeu-os no cabelo, porque não conseguia ver bem
com as lentes molhadas.

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