O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

engrossava sob uma atmosfera pesada. O sol impiedoso reflectia-se no
passeio e o brilho intenso feria os olhos. Uma pessoa sentia-se asfixiar com o
calor insuportável e o cheiro a combustível queimado. Pararam à beira do
passeio, de costas para os jardins da Câmara Municipal e da Igreja do Carmo,
à espera de uma aberta, a verem o bulício dos carros a passarem, os
machimbombos azuis e brancos que partiam dali para o resto da cidade, os
gestos expeditos do sinaleiro negro, fardado de branco, de luva branca, a gerir
o caos no meio do asfalto, em cima de um pequeno estrado redondo pintado
com listas vermelhas e brancas. Dois maços de tabaco gigantes inclinavam-se
no topo do prédio da Bonança, anunciando as respectivas marcas; uma faixa
de cartazes publicitários estendia-se ao longo do primeiro andar de um
edifício público. Homens engravatados, a destilarem o calor nos seus casacos
formais, de pasta na mão, furavam a massa humana no passeio, apressados
para os seus compromissos profissionais. Uma quitandeira com um cesto de
fruta na cabeça levava um filho às costas, seguro por um pano étnico enrolado
no corpo e a abanar a cabeça adormecida ao ritmo dos passos da mãe.


Atravessaram a rua, a fintar os carros indisciplinados, quase chocaram com
um jovem a correr para apanhar o autocarro. Alcançaram a sombra dos
prédios e seguiram em direcção à Rua Sousa Coutinho, para os lados da
Baixa, do mar. Foram andando em ritmo de passeio, apreciando a confusão de
todos os dias. Está tudo igualzinho, espantou-se Regina, como se nada tivesse
acontecido, e no entanto...
e no entanto ela sabia que debaixo daquela
normalidade aparente havia uma enorme preocupação em ebulição, um
nervosismo latente. Parecia que as pessoas continuavam a tratar da sua vida
de sempre, mas bastava parar nalgum sítio público, ouvir as conversas ou
falar com alguém e o assunto não variava. Regina não conseguia deixar de
pensar que se tratava da calma antes da tempestade. Era uma questão de
tempo até o furacão chegar, virar a cidade de pantanas, as pessoas entrarem
em pânico, enlouquecerem e, quem sabia, começarem a matar-se umas às
outras.


— Então — disse Patrício —, porque é que me telefonaste?
— Queria conversar.
Patrício lançou-lhe um olhar de esguelha, de sobrancelha erguida. Regina
pareceu-lhe perturbada. Teve vontade de a abraçar, consolá-la. Estava
deslumbrante, pensou, muito feminina, no seu vestido florido que lhe dava
pelos joelhos, com uma fita de pano igual a agarrar-lhe o cabelo.

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