O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

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Assim como começou, a chuva parou, subitamente, dando a impressão de
que alguém tinha aberto a torneira de um chuveiro divino e, ao fim de meia
hora, fechado. Entretanto, a água infiltrou-se na trincheira por todos os lados.
Escorreu por entre os sacos de areia e caiu da borda até já não se verem os
pés, a dar pelo cano das botas. Um lamaçal líquido cobriu o fundo e obrigou
toda a gente a ficar de pé para não ficar empapada. Mas, como a trincheira
não era suficientemente profunda para lhes permitir ficar de pé sem exporem
a cabeça à mira do inimigo, viram-se forçados a encostar-se à parede
enlameada com as pernas flectidas. Ao fim de meia hora nesta incómoda
posição, os soldados, cansados, desistiram da luta inglória para se manterem
fora da água e, assim como assim, como de qualquer maneira já estavam
encharcados, encolheram os ombros e assentaram os fundilhos na sopa
morna.


Nuno foi dos primeiros a render-se ao peso do seu próprio corpo e a
resvalar para o fundo. Tinha a roupa molhada e coberta de lama. Os minutos
arrastavam-se sem nada acontecer, os soldados falavam por murmúrios, a
escuridão era total, não se via qualquer movimento na floresta, nem sequer se
via a floresta, apenas um manto negro para lá da trincheira. Pensou que os
turras talvez se tivessem retirado.


— Será que se foram embora? — sugeriu ao soldado ao seu lado.
— Nã... — disse o jovem, conhecedor das manhas do inimigo. — Eles
ainda ali estão.


— Como é que sabes?
— Escuta. — Nuno pôs-se à escuta e não ouviu nada.
— Escuto o quê? — perguntou, sem perceber. — Não se ouve nada.
— Exacto. Não se ouve nada. Se eles se tivessem ido embora, poderíamos
ouvir a bicharada na floresta. Como não se ouve um pio, quer dizer que eles
ainda lá estão.


Fechou os olhos, mortificado, a tomar consciência de como os pormenores
faziam a diferença entre a vida e a morte num sítio daqueles. Ele não tinha a
experiência, não sabia metade do que o jovem soldado sabia. Sozinho, nem
um dia sobreviveria no mato. É bom que, um destes dias, não me veja
obrigado a fazer uma aterragem forçada num sítio qualquer isolado,
pensou.

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