O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

O soldado acendeu um charro e partilhou-o com Nuno e, dali a pouco, ele já
se estava a rir por coisa nenhuma, a achar tudo muito hilariante, e as suas
preocupações como que se dissiparam no fumo misericordioso.


Sentiu um insustentável peso nas pálpebras e, a certa altura, deixou-se
vencer pelo sono. Não soube por quanto tempo, mas dormia profundamente
quando o tiroteio estalou na trincheira e acordou sobressaltado. As armas ao
seu lado cuspiam fogo sobre a floresta. Foi disparado um very light e o céu
iluminou-se. Nuno olhou para cima espantado e teve a sensação de sonhar
acordado. A luz artificial projectada pelo pequeno pára-quedas a pairar no
céu, o matraquear das armas e o espectáculo das balas tracejantes unindo por
uma linha de fogo a trincheira e o mato, tudo aquilo se desenrolava na sua
cabeça como uma fantasia extraordinária.


— Segura aqui — pediu o soldado, passando-lhe para a mão um novo
charro, que estava a atrapalhar-lhe o manuseamento da G-3.


Nuno pôs-se a fumá-lo e sentiu-se ainda mais leve, como que a planar pela
confusão do combate. O susto inicial já lá ia, a consistência do medo perdeu-
se a favor da curiosidade pelo desenrolar dos acontecimentos, dando lugar à
inocente sensação de ser só um espectador vagamente intrigado com os gritos
urgentes dos soldados, o alarido das armas, o cheiro intenso da pólvora e a luz
branca e bruxuleante do very light que projectava estranhas sombras na
parede da trincheira. Estes rapazes sabem o que fazem , pensou Nuno,
descansado, anestesiado pelo efeito alucinogénio do charro. Uma rajada mais
afoita chicoteou a terra entre Nuno e o soldado, que deu um salto para o lado
e vociferou um cum caralho! de susto. Mas nem mesmo isso abalou a
olímpica indiferença de Nuno, preocupado em prender o fumo nos pulmões
até não aguentar mais e em soltá-lo lentamente de boca aberta e olhos
semicerrados, sem se alterar por causa das balas. De repente, sentiu-se puxado
para baixo pelo soldado, que lhe perguntou aos gritos o que raio estava a
fazer, e nem tinha dado conta de que se havia levantado e se pusera a observar
a batalha enquanto fumava o seu cigarrinho de liamba.


O tiroteio parou, o silêncio tomou conta da noite, as horas arrastaram-se, o
fumo dissolveu-se e Nuno, com a mente mais clareada, voltou a ter
consciência do atoleiro em que estava metido. Do outro lado da trincheira
chegavam-lhe os incentivos enérgicos do tenente, que mantinha os homens
em permanente alerta com a sua voz cavernosa. O soldado a seu lado, de
barriga contra a parede de terra, olhou para baixo.


—   Então,  pá? —   disse.  —   Já  desceste    à   terra?
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