O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

quanto bastou para os portugueses soltarem uma fuzilaria infernal sobre eles,
abatendo uns, ferindo outros, desbaratando os restantes. Rebentou um tiroteio
impressionante, ensurdecedor, esmagador. Os soldados embalaram no fogo à-
vontade, animados com os clarões simultâneos das armas em disparo
automático, enfeitiçados pelos fios amarelos das tracejantes a abaterem-se
sobre a posição do inimigo, as balas a explodirem contra as árvores, a
deitarem por terra os guerrilheiros em fuga, a despedaçarem corpos com um
poder de destruição brutal. Parecia fogo-de-artifício, foi uma demonstração de
força que entusiasmou os soldados. Estes gritavam excitados com o seu poder
maléfico, numa violência sem freio, sem contenção, fora de si, inebriados
com o festim diabólico. O sangue fervia com a carnificina. Animados por
uma febre de matar, os homens descarregavam as armas a uma cadência de
milhares de tiros por minuto e voltavam a carregá-las, no meio de uma
berraria de insultos ao inimigo, logo voltando a colar o dedo ao gatilho, numa
descarga de balas, de nervos, até esvaziarem os cartuchos.


O tenente Macário era o único de cabeça fria, o instigador que soltara a
besta. Sabia manipular os espíritos inseguros, tinha a superior capacidade de
carregar nos botões certos das almas inocentes e transformar rapazes vulgares
em monstros desapiedados. Era o que precisavam, senão para ganhar a guerra,
pelo menos para lhe sobreviver. Quando chegavam os momentos decisivos, o
tenente depositava-lhes nas mãos o divino poder de destruição, inquietava-os
com o medo da morte e largava-os. Eles sabiam o que fazer. Seguiam as
instruções do tenente com uma lealdade cega porque, no alto da sua
excentricidade, o omnipresente oficial podia ser um tipo estranho, mas era o
tipo estranho que lhes transmitia a segurança de que eles precisavam para não
perderem o norte, para se sentirem mais fortes do que o inimigo e fazerem o
que tivessem de fazer para saírem com vida da armadilha mortal que era
aquele sertão inóspito, pejado de perigos.


O tenente tinha os seus momentos, digamos que tinha a sua quota parte de
barbaridades. Os soldados já o haviam visto fazer coisas de dar a volta ao
estômago, embora ele conseguisse sempre, com duas ou três palavras sábias,
dar um sentido pedagógico às suas acções e amenizar o teor macabro da
selvajaria. Atirava uma granada para o meio de um grupo de guerrilheiros
feridos e fora de combate e depois rosnava que era uma mensagem para os
outros, ou então retalhava um prisioneiro com uma faca do mato para lhe
arrancar algumas respostas vitais e, a seguir, recomendava ao enfermeiro que
tratasse bem do homem, porque nos deu informações que podem salvar
muitas vidas. De modo que os soldados pensavam que o tenente era um tipo

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