O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

primeiros incidentes aconteceram logo no 1.o de Maio, quando alguns
manifestantes anti-colonialistas deram asas à liberdade de expressão recém-
adquirida, porventura levando o seu entusiasmo mais longe do que as
autoridades estavam preparadas para aceitar. As manifestações foram
reprimidas à força e feitas prisões. Cedo se percebeu que Luanda, bem como
o resto de Angola, poderia afundar-se no caos da anarquia, caso se permitisse
que o poder caísse na rua. Décadas de antagonismos a larvar no silêncio das
almas, rivalidades raciais, pequenas questiúnculas de vizinhos, negócios mal
resolvidos, enfim, todas as contingências que no passado tivessem levado
alguém a odiar alguém, teriam espaço para serem vingadas por mãos que, à
primeira oportunidade, se sujariam de sangue ao arrepio da lei. A nova ordem,
dividida entre a benevolência libertária e a necessidade de não perder o
controlo, corria o risco de claudicar perante vontades bem menos tolerantes.


A questão política era a mais determinante, estava bem de ver. Os poderes
ocultos de ambos os lados da barricada tudo fariam para manipular o
nervosismo latente, para acirrar os espíritos desassossegados por infinitas
inseguranças. A confusão social tanto poderia aproveitar aqueles que gritavam
pela velha guarda como aqueles que há muito ansiavam o poder e só
esperavam que o governo perdesse definitivamente as rédeas da situação.
Tratava-se, portanto, de um braço-de-ferro entre dois lados dispostos a
sacrificar inocentes. Isto sem falar que, por sua vez, cada um desses dois
lados se dividia em várias facções hostis.


Então, a onze de Julho, um taxista branco foi encontrado morto no seu
carro, no Bairro da Cuca, nos subúrbios negros. O assassinato nunca foi
explicado, mas nessa altura o clima de confrontação chegara ao ponto de
ebulição e o incidente foi um pretexto tão bom como outro qualquer para
provocar uma explosão de violência. Milícias civis brancas, armadas,
invadiram os bairros de maioria negra e espalharam o terror e a morte. Dir-se-
ia que tentavam ainda mostrar quem mandava em Angola, como se os brancos
não se apercebessem de que haviam sido ultrapassados pelas circunstâncias e
não estivessem dispostos a aceitar a derrota.


Os habitantes dos musseques começaram a fugir, a engrossar filas de
refugiados a caminho da estação ferroviária, famílias inteiras à procura de um
comboio que as levasse para longe do perigo, para as suas terras de origem,
no interior do sertão, onde só as esperava a pobreza. Os comboios partiam
cheios de Luanda, a deitar por fora de gente desesperada por segurança.


Os mortos foram a enterrar ao som surdo, retumbante, dos cânticos de
guerra e ao ritmo marcial das danças tribais, subindo de tom, excitando os

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