O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

ouvisse uma queixa, era bom conversar com alguém que respondesse aos seus
comentários, para variar. Farta de falar para o boneco estava ela, já que o
brigadeiro seu marido, encalhado na poltrona de orelhas da sala desde a
trombose, só abria a boca para comer, quando ela o alimentava à colherada
como se fosse um bebé com medalhas ao peito, espetadas no casaco do
pijama de riscas manchado de nódoas antigas.


O senhor Dantas entrou na sala de jantar a capitanear um grupo de negros
engravatados, desembaraçado, um passo à frente dos outros, fazendo as
honras do hotel, onde era comensal reincidente. Foi logo abordado pelo chefe
de mesa, que cumprimentou com um aperto de mão de cortesia, uma
deferência que não os tornava amigos, nem tão-pouco extinguia a cerimónia,
mas significava que o senhor Dantas não se considerava superior ao
empregado. Cada um no seu lugar, mas somos todos filhos de Deus. Era
assim o senhor Dantas, sempre a espalhar simpatias, a boa disposição em
pessoa, solícito, um facilitador de soluções para os problemas dos seus
parceiros de negócios.


Nuno acenou-lhe da mesa, reparando que havia trocado os seus americanos
pelos novos senhores de Angola, gente influente que chegava de fora para se
instalar no regime vindouro. As revoluções, as mudanças de poder, traziam
sempre oportunidades de negócio, como o senhor Dantas bem sabia. A saída
dos portugueses, a desorganização económica, conduziria a uma inevitável
escassez de produtos. O mercado entraria em ruptura, as prateleiras dos
supermercados ficariam à míngua enquanto se procedessem aos ajustamentos
no topo da cadeia alimentar. Depois da euforia da independência, o povo ver-
se-ia na penúria, sem ter que comer, e ficaria furioso. A nova oligarquia,
sequiosa de assumir os negócios do Estado, mas mal preparada para os
conduzir, teria pouco tempo para se adaptar. O senhor Dantas contava com
isso, contava com a desorientação dos homens que vinham do mato para gerir
uma economia depauperada de que não entendiam nada; contava com as
medidas desesperadas para conter as revoltas, com os oportunistas que se
aproveitariam da situação e com a corrupção generalizada; contava com as
interessantes possibilidades que surgiriam para mediar transacções, para fazer
tráfico de influências, assim estivesse ele bem colocado entre a elite
emergente, tarefa em que, obviamente, já se estava a empenhar. O senhor
Dantas, que não era homem para se atrapalhar com mudanças, saberia
orientar-se nos meandros tumultuosos do caos económico e social que se
perspectivava para Angola.

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