O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

agora...


— Ah, está bem — fez um gesto de mão a varrer o ar, como quem diz deixa
lá isso
, embaraçado, e quebrou a magia do momento. Regina voltou à carga.


— De qualquer maneira — disse —, eu quero ir-me embora desta terra o
mais depressa possível. — Nuno deixou cair os braços, desconcertado com a
persistência dela.


— Regina...
— Qual Regina! — exclamou ela, pondo-se de pé num salto, como que
catapultada pelos joelhos. Apontou para a janela. — Passam-nos camiões
cheios de cadáveres à porta, Nuno. O que é que nós estamos a fazer aqui?
Acorda. Angola acabou para nós. Não temos futuro nesta terra.


— Muito bem — concedeu. — Tens razão, mais tarde ou mais cedo
estamos condenados a partir, mas...


— Ainda bem que o admites — interrompeu-o, exasperada — porque eu
não tenciono ficar à espera de que me venham bater à porta e que me apontem
uma arma e me digam que, ou me vou embora ou me matam, se não me
matarem logo, a mim, a ti e ao André, sem se incomodarem em levar-nos ao
aeroporto.


— Não sejas dramática — pediu-lhe, fazendo uma expressão
condescendente de quem ouve um disparate mas não o leva muito a sério.
Regina, porém, sentiu-se ainda mais irritada. Voltou à janela, abriu-a a custo,
escancarou-a com gestos enérgicos, numa violência atrapalhada. Toda ela
tremia, de nervos, de medo, de desespero.


— Não sou dramática? — disse. — Não sou dramática?! O que é que
ouves? Diz-me... — apontou para trás, para fora, com uns olhos arregalados.
O crepitar abafado das metralhadoras e os estrondos surdos das granadas das
RPG invadiram a sala, trazidos pela brisa quente da noite.


— Isso está muito longe daqui — replicou Nuno, sem grande convicção. —
A tropa não deixa que os combates venham para a cidade.


— Meu Deus, tu não queres mesmo ver o que está à tua frente. A tropa não
deixa... pfff... — fez, com desprezo. — Quantos tiroteios é que já
aconteceram na cidade sem que a tropa o tivesse evitado?


— Mas... — calou-se, sentindo que se lhe esgotavam os argumentos.
— Exactamente — disse Regina. — A tropa não vai conseguir defender-nos
por muito mais tempo. E, depois, o que é que vai acontecer? Metade dos

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