O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

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Beto Agostinho era um jovem franzino de aparência enganadora. Um
espeto em pessoa, muito magro mas também invulgarmente alto, Beto estava
longe de ser o rapaz doce e sem malícia que se fazia dele à primeira vista.
Talvez pela penúria de carnes, ou pelo rosto de menino onde sobressaíam uns
grandes olhos espantados de pueril ingenuidade, ele transmitia a imagem da
candura feliz de um adolescente à beira de se tornar homem. Tinha lábios
carnudos e um sorriso fácil que mais reforçava a ideia de miúdo brincalhão e
afável. De resto, ele era mesmo conhecido pelo epíteto de Beto Brincalhão e
dificilmente alguém acreditaria que pudesse ter algo a ver com as vicissitudes
da violência política que alastrava pelo bairro, não fosse a sua fama,
entretanto adquirida por via dos impiedosos desmandos que lhe eram
justamente atribuídos.


Nascido há quinze anos em Luanda de pai e mãe negros, Beto Brincalhão
recebera dos progenitores uma sólida iniciação política baseada nas mesmas
cartilhas marxistas professadas pelo MPLA. Agora, enquanto o pai acampava
no porto de Luanda, dinamizando sucessivas greves que aos poucos iam
levando a economia angolana ao colapso, a mãe, enfermeira no Hospital
Maria Pia, queixava-se amargamente do massacre que via todos os dias,
traduzido em centenas de mortos e feridos que levavam o hospital à beira da
ruptura e do esgotamento do pessoal médico e de enfermagem. Em
contrapartida, os hospitais de São Paulo e o Universitário estavam encerrados,
os médicos tinham-se ido embora. Beto, por seu lado, por esses dias
abandonara os estudos à revelia dos pais para colaborar com invulgar afinco
na luta que trazia os movimentos de libertação em confronto nos bairros
limítrofes da capital. Era um dos Pioneiros, estrutura do MPLA que agrupava
os seus militantes mais novos — crianças na realidade —, nesse tempo usados
como carne para canhão do Poder Popular , o instrumento de agitação civil
que vinha sendo decisivo para este movimento ganhar terreno em Luanda.


Morava com os pais no Bairro do Golfe, ali para os lados do aeroporto, um
imenso labirinto de lata faiscante exposta aos inclementes raios de um sol que
descia sobre uma neblina de poeira vermelha levantada das ruas de terra
batida e que, ao chegar da noite, se transformava em campo de batalha, uma
fogueira de ódio que os militares portugueses acabavam por deixar arder,
impotentes para apagar todos os fogos quando os confrontos se
generalizavam. Beto Brincalhão vivia numa casa modesta mas, ainda assim,
uma casa de tijolo, o que, apesar de tudo, fazia da sua família uma das mais
bem-sucedidas naquele mar de miséria que a indiferença do antigo poder

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