O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

colonial deixara espalhar-se indefinidamente para lá dos limites da cidade de
asfalto. Mercê do seu quase metro e oitenta, Beto Brincalhão ascendera com
naturalidade à liderança do grupo de menores com quem costumava andar.
Orgulhava-se de ter sido um dos primeiros a ir atrás dos brancos, de ter
incendiado as suas casas com cocktails Molotov , de ter destruído as suas
propriedades, os seus negócios, de ter aterrorizado os fubeiros que desde
sempre ouvia os pais apelidar de trapaceiros e exploradores do povo.


Em virtude das suas façanhas memoráveis, Beto ganhara o direito de
empunhar uma metralhadora Kalashnikov e de passar a ombrear com os
camaradas adultos nas makas nocturnas que mantinham o bairro em
polvorosa. Adorava lutar com armas, divertia-se muito com o festival de
pirotécnia em que se transformavam as madrugadas riscadas por balas
tracejantes e abaladas por explosões portentosas, de fazer parar o coração de
tanta excitação. Era poderoso, sim, sentia-se o tipo mais forte do mundo. Beto
estava ciente da necessidade imperiosa que os mais velhos lhe transmitiam de
expulsar do bairro os soldados e apoiantes da FNLA, o qual, diziam-lhe, era
um movimento fantoche dos neocolonialistas zairenses e norte-americanos, o
que quer que isso quisesse dizer. Mas, neocolonialismos à parte, antes do
mais, aquilo tudo não passava de um jogo para ele, uma oportunidade única
de fazer todas as asneiras possíveis e nunca imaginadas sem ser admoestado.
Pelo contrário, até lhe parecia que, quanto pior fazia, mais o felicitavam. É
claro que a extraordinária sensação de poder que sentia ao usar uma AK-47 ,
ao disparar a arma ou apenas ao apontá-la aos vizinhos, homens e mulheres
adultos, que fazia ajoelhar e obrigava a implorar-lhe misericórdia, era tão boa
que chegava a ser viciante. Mas às vezes fartava-se de andar aos tiros. Sem os
seus amigos por perto não tinha a mesma graça. Ao lado dos camaradas das
FAPLA as coisas tornavam-se mais exigentes, mais duras, e havia alturas em
que Beto Brincalhão se aborrecia e ia para casa.


Apanhou o machimbombo bem cedo de manhã para o centro. Ia
acompanhado pelo seu amigo Mané Wilson, o Wilsonsinho, como era
conhecido por ser um rapazinho pequeno, considerado a mascote do grupo de
Beto Brincalhão e protegido deste. Era frequente Beto distribuir murros e
biqueiradas pelo pessoal que Wilsonsinho irritava a toda a hora com
implicações infantis, provocando reacções que lhe sairiam caras se não tivesse
as costas quentes. Contava apenas treze anos, mas já participara em actos tão
ignóbeis que ultrapassavam até a imaginação de muitos adultos perversos.


Habitualmente   eles    não saíam   do  bairro. Era o   seu mundo,  o   seu território.
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