Mas havia ocasiões em que desciam à cidade de asfalto para entrarem em
algumas makas organizadas. E gostavam, não só pelo passeio como por ser
uma variação da rotina do bairro. Os agentes provocadores do MPLA
usavam-nos nas manifestações, colocavam-nos na primeira linha para
desafiarem os soldados e para servirem de escudos humanos quando as coisas
aqueciam. E eles eram bons nesse trabalho subversivo, pois conseguiam
enervar toda a gente e levar as autoridades e os manifestantes a perderem a
cabeça e a entrarem em confronto. Elevavam a tensão a níveis impossíveis,
faziam saltar a tampa da panela. O objectivo era o caos, evidentemente,
pretendia-se desencadear a pancadaria para depois o movimento se poder
vitimizar perante a imprensa e a rádio, para ganhar a simpatia da opinião
pública e pressionar psicologicamente os mediadores portugueses de modo a
que estes fossem mais favoráveis ao MPLA. Os outros movimentos usavam
estratégias semelhantes. Os incidentes, mais ou menos graves, entravam na
contabilidade das atitudes inconvenientes registadas pelos serviços de
informação militar em todo o território angolano e transmitidas ao governo. O
Alto-Comissário confrontava os líderes dos movimentos com os relatórios do
ódio, pedia-lhes bom senso, civismo, para evitar mais sofrimento ao povo,
aqueles penitenciavam-se pela escalada dos conflitos e prometiam acabar com
a violência, mas nada mudava de facto.
O machimbombo ia cheio, todos os lugares ocupados, mas um pesado
silêncio tomava conta do seu interior. Não era só a natural falta de disposição
para conversar logo pela manhã antes de se tomar um café, de se espantar um
sono velho de cansaço acumulado. Os rostos acabrunhados dos passageiros,
gente simples que continuaria a ir trabalhar para os portugueses até ao último
dia, tinham outro significado, espelhavam o tormento de mais uma noite de
sobressalto. Beto Brincalhão e Wilsonsinho eram os únicos passageiros bem-
dispostos e tagarelas. Sentavam-se a meio do autocarro e Beto ia a contar as
suas façanhas da noite passada.
— Foi uma maka feeeia — empolgou-se —, porrada mesmo. Os fênélá
atiravam na gente, a gente atirava neles. Havia feriiidos — agitou muito a
mão para cima e para baixo, dando ênfase à situação dramática que relatava,
mas a seguir calou-se.
— E dispois? — perguntou Wilsonsinho, curioso.
— Dispois fui imbora.
— Ué! — espantou-se o outro. — E pode?