O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

— Pode, sim.
Se algum dos passageiros reconheceu aqueles miúdos, se alguém ali sabia
quem eram e o que faziam, se ao menos um dos homens ou das mulheres que
viajavam próximo deles ouviu as palavras de Beto Brincalhão e percebeu que
aquele miúdo era um dos responsáveis pelo terror que por esses dias trazia o
bairro em pânico, se realmente aqueles pacatos cidadãos, humildes e pacíficos
trabalhadores, sabiam que aqueles dois rapazes despreocupados eram os
mesmos que aterrorizavam as suas famílias, a verdade é que não disseram
nada, não fizeram nada, nem sequer deram o menor sinal de reconhecimento
ou esboçaram um gesto, uma expressão de censura. O medo estava instalado
nas almas, as pessoas imaginavam coisas terríveis e encolhiam-se, remetiam-
se à ilusória segurança do silêncio. Xingas os putos no machimbombo hoje,
batem-te à porta de casa amanhã. Quem sabia? Quem é que podia, em
consciência, pôr em risco a sua vida, a vida da sua família, por causa de uma
reprimenda? Luanda estava imprevisível, a lei e a ordem eram uma fantasia, a
justiça uma anedota. Cada qual fazia o que lhe dava na veneta desde que
tivesse uma Kalash à mão.


Uma senhora idosa entrou no machimbombo , cambaleou pelo corredor à
deriva num passo incerto, positivamente atirada lá para trás pelo arranque
impulsivo do condutor, que retomou a marcha sem consideração pela
condição frágil da passageira. Beto Brincalhão reparou nela. Mama-ngana,
murmurou de si para si, ao mesmo tempo que se levantava e oferecia o seu
lugar à senhora.


Duas paragens à frente, os dois rapazes chegaram ao seu destino e desceram
sem serem incomodados.


— Vai haver maka hoje? — perguntou Wilsonsinho, caminhando
apressadamente para acompanhar o passo largo do amigo.


— Vai, pois — respondeu Beto Brincalhão.
— Porrada a sério?
— Porrada mesmo.
— Porreiro — alegrou-se o pequeno na sua ingenuidade, sem conseguir
prever que ia a caminho de uma tragédia.

Free download pdf