O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

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Quando uma manifestação dava para o torto em Luanda, dava mesmo para
o torto. Desde o 25 de Abril, tinha-se saltado da repressão proibitiva do
regime anterior para a bandalheira total dos excessos revolucionários. Antes
não havia manifestações porque simplesmente não eram permitidas, mas nos
dias que corriam até se faziam protestos de rua espontâneos sem se chegar a
apurar as motivações dos manifestantes. O que se sabia é que contribuíam
para dificultar a vida das autoridades e para alimentar o ambiente de caos,
anarquia e insegurança. Uma manifestação normal — em geral faziam-se
frente ao Palácio do Governo — incluía o apedrejamento de janelas pela
populaça e era dispersada pela tropa com tiros para o ar. Mas a manifestação
daquela manhã não foi normal e não se limitou à rotina das provocações
violentas. Tal como Patrício pudera prever — e depois confirmar —, aquela
era das que davam para o torto, com a sua batalha campal, os seus mortos
espalhados pelo asfalto, os seus feridos a coxearem com uma bala na perna
ou, se demasiado maltratados para conseguirem fugir, a serem amontoados de
qualquer maneira nas ambulâncias e despejados nas Urgências de um hospital
onde, ao fim de algum tempo, seria impossível caminhar sem se andar a
escorregar num chão coberto de vermelho-vivo, por entre corpos prostrados,
pessoas esquartejadas como animais, num ambiente saturado pelo cheiro
enjoativo do sangue, particularmente difícil de assimilar quando combinado
com o panorama dramático do massacre, os gemidos e os gritos de
sofrimento. Em suma, uma imagem quase insuportável para um espírito não
treinado para ignorar a sugestão de fragilidade da condição humana.


Na sua curta carreira de repórter, Patrício já passara por mais experiências
extremas do que a maioria dos jornalistas numa carreira inteira. Por mais de
uma vez obrigara-se a visitar as Urgências dos hospitais para se inteirar do
número e do estado das vítimas dos tiroteios, cada vez mais frequentes. E
nunca se habituara. Patrício era um tipo egoísta, interesseiro, calculista, mas
de modo algum dado a violências e, embora fosse incapaz de bater em
alguém, não se esquivava a situações explosivas. Se o convocavam para uma
reportagem arriscada, não lhe faltava a coragem para se ir meter no centro do
furacão. Por isso ele sabia que, depois de estar debaixo de fogo, um tipo ainda
mal refeito do susto, de corpo e alma enfraquecidos pelos nervos em franja,
ainda a ressacar a adrenalina, entrava nas Urgências, deparava com aquele
horror de dar a volta ao estômago e mal se continha na presença da morte.
Mas Patrício engolia a angústia, tomava as suas notas, fazia as entrevistas que

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