O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

tinha a fazer, saía. Chegado lá fora, lívido, a sentir-se doente, refugiava-se
num canto discreto ou corria para trás de uns arbustos e vomitava as tripas, o
sangue, a morte, o medo e a raiva. Depois, então recuperada a compostura, ia
para a redacção, sentava-se à secretária, respirava fundo e despejava tudo na
máquina de escrever.


Muitas vezes, ao cobrir uma manifestação, rodeado de milhares de pessoas,
de tanta confusão, um repórter nem se apercebia de onde partia o primeiro
tiro, e mais tarde via-se a braços com dezenas de versões diferentes, conforme
a percepção ou a honestidade das testemunhas. Desta vez, porém, Nuno
presenciou o início do tiroteio. Viu o estudante assaltar o soldado, tentar
roubar-lhe a espingarda, e viu o segundo soldado erguer a sua G-3 e soltar
uma rajada troante que varreu o estudante e quem estava perto deste.


Beto Brincalhão rejubilava de excitação com aquilo do estudante passado
dos cabeça a xingar o tropa
e dava o seu melhor para ajudar à festa. A seu
lado, Wilsonsinho saltava descontrolado como um pequeno guerreiro a
espumar de raiva e parecia mesmo fora de si. Aqueles instantes antes da
pancadaria estourar eram tão intensos que Wilsonsinho tinha dificuldade em
manter a cabeça a funcionar direita e, porra, curto bué aquela loucura toda,
dizia depois, a beber umas Cucas com Beto na roulotte da Avenida Brasil,
enquanto falavam com orgulho das merdas fixes que fizemos hoje. Para os
dois rapazes tratava-se de mais uma prova de coragem e servia para
solidificar as suas empedernidas reputações de putos maus. Obviamente,
sabiam distinguir o bem e o mal, mas lá de onde eles vinham o bem não era
um conceito muito popular nos dias que corriam, enquanto que fazer o mal
conferia-lhes o respeito dos seus pares e isso é que interessava.


Beto Brincalhão topou o movimento do estudante a lançar-se sobre o
soldado e nem se deteve para avaliar a situação. A única ideia, pouco
reflectida, que lhe atravessou a mente como uma bala antes de se precipitar
para a morte certa, foi ajudar o jovem branco a roubar a espingarda ao
soldado. E avançou para conquistar o seu troféu. Atrás dele, Wilsonsinho agiu
por reflexo. Ao ver o amigo correr, fez o que sempre fazia, seguiu-lhe os
passos.


O soldado mais recuado, o que há pouco chamara o camarada para junto de
si, era um jovem pára-quedista chegado recentemente a Luanda para reforçar
o dispositivo, sem experiência de combate mas condicionado por um treino

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