O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

rígido que não lhe dava espaço para hesitações e, ao ver o camarada ser
atacado, reagiu automaticamente. Ergueu a sua Heckler & Koch Gewehr 3 e
abriu fogo.


O estudante, abatido à queima-roupa, caiu morto no chão. Beto Brincalhão
foi atingido por três balas que lhe despedaçaram o estômago e a coluna. O seu
último pensamento foi para a G-3 do soldado, vou foder-lhe a machine.
Quando deu por si, estava deitado no asfalto e não sentia nada, apesar de ter a
barriga aberta numa pasta de sangue, de vísceras à solta e de ossos
estilhaçados. Tentou levantar-se mas o seu corpo não tinha vontade própria.
Viu braços, corpos desconexos a passarem por cima de si e, mais além, o
algodão branco das nuvens recortado no céu azul. A atmosfera pareceu-lhe
tornar-se gasosa, plena de bolhas de ar flutuantes. Um manto negro desceu
sobre a sua vista. Morreu três segundos depois de ter sido atingido. Ao lado
de Beto jazia o corpo sem vida de Wilsonsinho, com a cabeça esfacelada por
uma bala e a massa encefálica derramada no asfalto. Nem chegou a
aperceber-se do que lhe aconteceu, teve uma morte instantânea, apagou-se
simplesmente, sem sofrimento, sem consciência.


Patrício manteve-se de cócoras durante os primeiros instantes. Houve só
uma rajada. O soldado disparou, deu um passo à frente com a espingarda
apontada à multidão, com a mão direita a segurar a arma pelo punho, o dedo
indicador a pressionar o guarda-mato para evitar um disparo desnecessário e,
com a esquerda, agarrou o camarada pelo uniforme e puxou-o, obrigando-o a
recuar, a voltar à realidade. À frente deles havia cinco ou seis corpos inertes e
vários feridos por terra. A manifestação desfazia-se à pressa, num pânico
desordenado, gente a correr para todos os lados, no chão espraiava-se um mar
de chinelos de enfiar no dedo abandonados no rasto da fuga de milhares de
pessoas que, no seu terror, empurravam brutalmente as que lhes antecediam,
levando a turba a recuar sem critério, atropelando-se umas às outras, caindo
no chão as mais fracas, espezinhadas pelas outras.


O soldado reprimiu as emoções e entregou-se aos aspectos práticos da
situação. Enquanto o resto da tropa formava uma linha rígida com os tapa-
chamas das armas a apontarem para o céu ardente, ele deixou cair o
carregador vazio e substituiu-o por outro cheio. Tinha disparado em
automático, um erro trágico, porque despejara injustificadamente vinte balas
sobre os civis, quando um único tiro teria sido suficiente para abater o
estudante hostil. Mandavam as regras que a arma estivesse em posição de
tiro-a-tiro, de modo a não se gastar todas as munições disponíveis numa só

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