O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

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Regina meteu pela Rua Guilherme Capelo, começou a subir e o trânsito
quase parou. Era apenas um pequeno troço da rua, mas a fila de carros
arrastava-se lentamente. Pela janela aberta, começou a chegar-lhe o rumor
surdo e afastado de milhares de vozes. À medida que foi avançando, o som de
fundo tornou-se mais perceptível e agora já se distinguia claramente a
cadência das palavras de ordem de uma manifestação, embora não fosse
possível perceber o que diziam. A faixa da esquerda estava limpa e Regina
ponderou a possibilidade de fazer inversão de marcha e voltar a descer a rua,
contudo não o fez. Andava-se devagar mas andava-se, e ela pensou que eram
só dois quarteirões. Tencionava virar à direita e descer a Avenida Álvaro
Ferreira, mas, estando esta impedida, poderia atravessá-la e safar-se pela Rua
da Misericórdia, em direcção ao Palácio do Governo e descer pela Calçada de
Santo António até ao Largo D. Afonso Henriques. Regina planeou de cabeça
o percurso alternativo, enquanto se aproximava do topo da rua. Dali a pouco
estaria a censurar-se, a perguntar-se por que diabo não dera a volta e se
afastara da confusão. Mas isso seria só depois de descobrir o grave erro que
cometera e, evidentemente, seria tarde demais.


O que levou Regina a tomar a má opção de seguir em frente e atravessar a
manifestação não foi apenas um erro de avaliação quanto ao trânsito. De
facto, ela acreditou que se tratava de um simples contratempo a que
conseguiria esquivar-se sem grandes dificuldades, mas o factor decisivo na
sua escolha, o que a atraiu rua acima como um íman, foi a curiosidade, a
necessidade de ver, de descobrir aquele brado poderoso que lhe chegava como
a promessa de algo emocionante. Ouvia, queria ver. Claro que tinha medo,
receava a violência desenfreada que desde o último ano varria a cidade com a
brutalidade de uma calamidade impossível de combater, como um fado há
muito escrito no Olimpo, a que os homens simples não se pudessem furtar. As
notícias dos combates que alastravam pelo país, os movimentos de libertação
que se trucidavam à beira da independência, o massacre indiscriminado de
milhares de inocentes que se atravessavam no caminho dos senhores da
guerra, eram para Regina coisas simplesmente absurdas. Mas, apesar do medo
e da dificuldade em entender a barbárie que animava os futuros timoneiros de
Angola, fossem lá quem fossem os vencedores no fim da loucura, uma pessoa
adaptava-se àquele ambiente de loucos. Regina sentia-se a navegar numa
tempestade de emoções, ora anestesiada e imune ao matraquear das armas,
ora uma pilha de nervos, temente pela sua família, por ela própria, sentindo-se

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