O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

a ver com a revolta nitista, espantaram-se perante o tiro de uma Kalashnikov
sem chegarem a perceber porque os matavam. As estimativas mais
conservadoras, de organizações insuspeitas como a Amnistia Internacional,
estimaram que o genocídio aleatório fez trinta a quarenta mil mortos. E no
entanto, nem Portugal nem o resto do mundo chegaram a pedir contas ao
governo de Luanda por este massacre inexplicável, que fez mais vítimas em
dois anos do que várias décadas de guerras.


No dia 5 de Junho desse ano, operacionais da DISA, a Polícia Política
angolana, surpreenderam Patrício na sua secretária da Emissora Oficial, a
meio de uma notícia de apoio ao Presidente da República e, sem o deixarem
chegar ao ponto final do elogio que escrevia, levaram-no algemado para a
prisão de S. Paulo. No dia seguinte, muito assustado e confuso, Patrício viu-se
perante a Comissão das Lágrimas, que o interrogou durante horas sobre o seu
envolvimento no golpe de Estado e a sua ligação ao Monstro Imortal. O
histórico comandante das FAPLA foi acusado de ser um dos líderes da revolta
e, por isso, executado como todos os seus companheiros de aventura. Já
Patrício, nem sequer estava a par do golpe, mas isso não lhe valeu de nada.
Foi insultado, ameaçado, intimidado e, finalmente, assassinado.


Nessa noite, uma discreta ambulância parou no pátio da prisão de S. Paulo.
Patrício e mais três companheiros algemados foram vistos a entrar na
ambulância por outros prisioneiros, os quais comentaram num sussurro
gelado que aqueles quatro desgraçados vão fazer uma viagem a Cuba,
eufemismo de cadeia para viagem para a morte. Com efeito, Patrício acabou
morto nessa mesma madrugada com uma bala na cabeça numa praia deserta.
O seu crime foi ser jornalista e ter a infelicidade de receber informações off
the record
de um dos cabecilhas do golpe de 27 de Maio. Não teve direito a
julgamento e ainda hoje é um dos milhares de nomes que constam da lista de
desaparecidos cuja existência o governo se recusa a admitir.


Regina foi dar com a sua casa virada do avesso. O apartamento tinha sido
revistado de uma ponta à outra por mãos metódicas, que reviraram todas as
divisões, abriram e despejaram todas as gavetas, todos os armários,
esventraram os sofás e os colchões das camas, partiram a loiça da cozinha,
abriram buracos nas paredes a golpes de picareta e arrancaram parte das
tábuas do chão. Em suma, um trabalho de vândalos levado até às últimas
consequências.

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