só não se lembrava porque escolhera Luanda. Sentado aos comandos do
avião, embalado pelo som de fundo monótono do motor, enredado na
tranquilidade dos pensamentos solitários, com os olhos postos na paisagem
melancólica do imenso sertão, no capim alto, amarelo, pintalgado de ilhas
verdes de árvores desgarradas, uma imensidão que se estendia a perder de
vista num dia soalheiro, de perfeita visibilidade, Nuno deu consigo a colar
pedaços de memória, a tentar reconstituir acontecimentos que deitara há
muito para trás das costas. Mas, por mais que se esforçasse, só seria capaz de
dizer que andava a planear o salto para África há tanto tempo que, algures
entre o sonho e a sua concretização, varrera-se-lhe da cabeça essa inspiração
decisiva que definira o seu futuro, que era responsável por estar naquele
momento a gozar a suprema liberdade de voar num céu limpo sobre uma terra
extraordinária. O que o levara a decidir-se por Angola? E porquê Angola e
não Moçambique, por exemplo? Teria sido um artigo numa revista? Uma
conversa com alguém?... Não se lembrava. Mas lembrava-se de ter pensado
em tudo, de ter tirado o brevet ainda na metrópole, já com a ideia de comprar
um avião. Lembrava-se de ter decidido correr o risco considerável que lhe
permitira reunir o dinheiro necessário para mudar de vida. Só muito mais
tarde, anos mais tarde, contara a Regina onde fora buscar o dinheiro. Bem, na
verdade Regina tinha acabado por intuir uma boa parte da história através de
muitas e muitas conversas, coisas que ele lhe fora dizendo, bocados de
informação dispersa que ela ia juntando como peças de um puzzle , resultante
de um estranho jogo psicológico. Ele não contava o segredo mas queria
contar. Ela não lhe perguntava directamente mas queria saber. Ele, por receio
da reacção de Regina, apreensivo com a desilusão que lhe pudesse causar; ela,
por não querer que o passado de Nuno, fosse qual fosse, voltasse para se
imiscuir na relação que os dois estavam a construir. O que interessava,
pensava Regina, era que ele tinha mudado. Mas enganava-se, pois Nuno não
mudara assim tanto como isso, Regina é que só o conhecia desde a época em
que, imaginava ela, Nuno se tornara uma pessoa diferente, disposta a largar o
lastro dos seus pecados e a seguir em frente.
De facto, com a ida para Angola, Nuno pretendia livrar-se do laço que se ia
estreitando ao redor do seu pescoço, certo de que, se continuasse a ignorar o
perigo, mais dia menos dia acabaria por ser preso e a sua vida entraria num
processo ruinoso e sem retorno. Contudo, a sua tendência para a aventura,
para os esquemas pouco claros, para transgredir os limites da legalidade, era
algo que não mudara. O menino que só pudera contar consigo próprio, que
crescera na companhia de um pai alcoólico, abandonado desde muito cedo
pela mãe que não conhecia, tornara-se um homem condicionado pelo espírito
de sobrevivência de outrora. Movia-se por instinto, inventava expedientes