O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

para lucrar, era egoísta, solitário e pouco dado a actos de contrição. Era,
enfim, o que a vida fizera dele, uma pessoa enclausurada na sua infância
aflita, na sua adolescência abandonada, de que lhe ficara o cheiro
preponderante a bafio do apartamento moribundo onde morava com o pai. Era
uma casa em decadência. A tinta lascada das paredes da sala caía aos bocados
e tropeçava-se nos buracos do tapete gasto e desfiado. Em cima da cómoda
riscada e empoeirada, as poucas e velhas fotografias iam perdendo a cor,
desbotadas como os sofás tristes que definhavam sob camadas de pó. As
janelas fechadas e a penumbra das lâmpadas fundidas que ninguém substituía
mergulhavam a casa num ambiente lúgubre e doentio. Na cozinha o
frigorífico estava sempre vazio e a louça suja crescia em cima do balcão. O
bolor alastrava por aquela casa desleixada.


Nuno não sabia quando é que o pai se fora abaixo, se antes ou depois de a
mãe o ter abandonado. Só se lembrava dele bêbado e a gritar contra a vida.
Quando estava sóbrio arrastava-se acabrunhado pela casa, tolhido por um
desgosto profundo ou um sentimento de culpa, algo que só ele sabia e não
dizia. Nessas alturas não falava e preferia ignorar o filho. Em contrapartida,
bêbado era insuportável, não se calava. Entrava porta adentro a embrulhar-se
no reposteiro pesado que a escondia, debatia-se furiosamente para se libertar,
vinha pelo corredor estreito a tropeçar na mobília, a derrubar os quadrinhos
amorosos que a mãe de Nuno havia pendurado numa outra vida, deixava-se
cair em cima de um sofá caprichoso que o fazia rolar para o chão, levantava-
se a resmungar, lutava para se equilibrar em alto mar, a caminho do quarto,
chegava à cama e apagava-se. Perdido no seu desespero, Nuno não
compreendia, era um menino sem mais ninguém e sentia-se abandonado.
Chorava à noite até adormecer de exaustão.


Dos tostões que o pai ia arranjando sabia-se lá como, visto que nunca lhe
conhecera uma profissão, um trabalho que fosse, Nuno pedinchava uma parte,
se o apanhava sóbrio, ou roubava-lhos do bolso do casaco ainda vestido, se o
surpreendia desmaiado na cama de casal onde dormia sozinho, meio morto,
meio afundado na depressão central do colchão velho e cansado que o ia
engolindo, de boca aberta, até só sobrarem as botas dependuradas à beira do
abismo. O pai usava umas botas muito puídas, protegidas das inundações
invernis por bocados dobrados de jornal que enfiava por cima das solas para
lhes vedar os buracos. Nuno esperava pelo momento certo para entrar no
quarto dele, mergulhar na atmosfera saturada pelo cheiro a vinho fermentado,

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