O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

túmulo bafiento e irrespirável onde nos encontramos é a casa onde passei a
minha infância merdosa. Foi aqui que eu cresci ao abandono, rodeado destas
paredes desbotadas cuja tinta nos cai aos bocados nos ombros, tal como a
caliça que se desprende do tecto ao ritmo dos passos do vizinho de cima,
nestes sofás apodrecidos que nos atiram para dentro de uma nuvem de pó
quando nos sentamos. Como vês, minha querida, a alegria perpétua que ando
por aí a esbanjar não passa de uma farsa para esconder uma realidade bem
menos encantadora. Já agora, a minha mãe fugiu sabe-se lá para onde e não
tenho irmãos, nem avós, nem tios, nem primos nem uma única alma viva a
quem possa chamar família, tirando o bêbado... o meu pai, claro. Para quando
marcamos o casamento?


Nuno tinha vergonha, como se fosse culpado de alguma coisa. Mas a sua
obsessão pelo segredo não justificava tudo, não explicava o medo paralisante
que o impedia de assumir a responsabilidade por outra pessoa, uma mulher,
um filho. Podia chamar-se a isso incapacidade para amar ou cobardia mas, se
Nuno se obrigasse a analisar esse estranho traço da sua personalidade, teria de
recuar alguns anos e admitir que a sua infância ainda interferia com a vida
adulta. Nuno abstinha-se de ter relacionamentos que fossem para além dos
prazeres mundanos porque sabia que, mais tarde ou mais cedo, estaria casado
e ela engravidaria. E ele não queria ter filhos. No fundo, tinha medo de ser
abandonado. Já vira o que um fracasso de amor fizera ao seu pai, ele próprio
já experimentara a rejeição paterna e não sabia se aguentaria uma segunda
vez. Debaixo daquela máscara de tipo porreiro que conhecia meio mundo,
havia um homem solitário, sem família, sem mulher e sem amigos.


O negócio das pastilhas florescia, os agarrados de bolsos cheios faziam
bicha para as comprar e as transacções, inocentes ao início, começaram,
naturalmente, a ganhar proporções mais sérias e menos discretas. Não
demorou a receber um aviso firme do porteiro de smoking preto e camisa
branca da boîte que costumava frequentar. Se queria andar a vender essas
merdas aos clientes, disse-lhe o homem, teria de fazê-lo lá fora, caso contrário
cortava-lhe a entrada. Pagou ao porteiro para o amansar. O dinheiro chovia de
todos os lados e, como Nuno já não chegava para as encomendas, ia-se
abastecendo com uma quantidade crescente de produto. Mas dava nas vistas,
e o seu fornecedor habitual fez-lhe ver que, se as pastilhas não eram só para
consumir, a coisa piava mais fino. Podia vender, claro que podia, mas teria de
pagar-lhe uma percentagenzinha, ou não vendia coisa nenhuma, ou então ele
partia-lhe as pernas. Em que é que ficavam? Nuno assustou-se, percebeu que
tinha ido longe demais e decidiu que ficavam em coisa nenhuma. Desistia,
ponto final, acabava-se a brincadeira. Vou pensar no assunto e depois se vê,

Free download pdf