O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

Concentrou-se na tarefa de sobreviver e não deu espaço ao pânico.


Mergulhou no interior da nuvem, foi absorvido por aquela massa densa e
escura e, de um momento para o outro, deixou de ver fosse o que fosse. Uma
terrível angústia tomou conta de si, merda, merda, merdaaa!, gritou, sentindo-
se muito pequenino, sozinho na cabina de pilotagem sem poder contar com
ninguém senão consigo próprio. À sua frente avistava apenas um branco sujo
compacto que se iluminava com as descargas permanentes de relâmpagos,
dando-lhe a impressão de estar no meio de um festival de néon. Lá fora a
temperatura desceu abruptamente e o monomotor começou a ser açoitado sem
piedade por um chuveiro de água primeiro, por uma saraivada de granizo
depois, pela chuva outra vez. O avião chocalhava como se uma mão gigante o
segurasse e o agitasse, indiferente à tenacidade do piloto agarrado ao manche
com o desesperado propósito de o manter a voar a direito. Nuno sentia o
coração a rebentar-lhe no peito, as pernas trémulas, os braços e as mãos
cansados, a fraquejarem devido ao esforço de lutar contra a turbulência dos
ventos cruzados. Passou um minuto, dois, três e Nuno só pensava que aquilo
nunca mais acabava, que o frágil DO-27 se arriscava a partir-se ao meio a
qualquer momento devido à violência da ventania infernal que pressionava a
estrutura, testava a resistência das cavilhas, dos parafusos, da chapa soldada.
O pequeno aparelho, praticamente ingovernável, continuou a saltar em todas
as direcções como um poldro às cangochas tentando derrubar o cavaleiro.
Valeram-lhe os cintos que o prendiam ao lugar. De súbito, começou a perder
altitude vertiginosamente, dando a impressão de estar a cair num buraco sem
fundo. Nuno imprimiu potência ao motor para contrariar a perda, mas o
aparelho não inverteu o sentido descendente e continuou descontrolado por ali
abaixo, em queda livre por mais umas centenas de pés, até que uma corrente
ascendente fez o que o motor não conseguia fazer e atirou o avião para cima,
disparado, à boleia do vento, até estabilizar novamente, voltar a ser sacudido
ao sabor das correntes de ar, tornar a cair e a subir algumas vezes, a fazer
lembrar uma montanha-russa, e então, passados uns intermináveis e
desesperantes cinco minutos, começar a libertar-se da tempestade, a ganhar
algum controlo e os instrumentos de voo, o velocímetro, o altímetro, o
horizonte artificial, que pareciam ter enlouquecido, recomeçarem a fazer
algum sentido.


Mais um esforço e o DO-27 saiu daquele mundo branco e riscado pelos
clarões das descargas eléctricas e o dia voltou a surgir misericordiosamente,
ainda sem visibilidade total, toldada pela chuvinha fina dos cirros que
subsistiam, mas em todo o caso já a suficiente para Nuno ver alguma coisa e,

Free download pdf