O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

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Regina era uma surpresa para Nuno. Ela surgira na sua vida quando já
estava tudo decidido. Nuno nunca se teria afastado de Lisboa por causa do
pai. Era estranho, mas sentia-se responsável pelo pai. Não se sentia
responsável pelas asneiras que o pai fazia, ou por ter arruinado a vida com a
bebida, ou ainda por ter transformado a sua infância numa completa desgraça
e por lhe ter roubado a felicidade que ele, como qualquer criança, merecia ter
tido. Nesse aspecto Nuno era muito lúcido, via as coisas com clareza e
culpava-o de todos os erros. O que o impedia de se afastar definitivamente era
a consciência de que, apesar de tudo, ele era o seu pai, a sua única família e,
se Nuno se fosse embora, não haveria mais ninguém que se preocupasse com
ele e que o ajudasse, ou o controlasse, de maneira a não acabar a deambular
pelas ruas na companhia de outros sem-abrigo bêbados, pois esse seria
inevitavelmente o seu destino.


Mas então o pai teve uma crise grave, foi transportado de urgência para o
hospital. Os médicos deram-lhe pouco tempo de vida. Tinha o fígado
destruído, um cancro disseminado e vários órgãos a falhar. Era uma questão
de dias, disseram-lhe, e foi. De certo modo, a morte do pai representava a
libertação de Nuno. Não mais teria de se preocupar em carregar esse peso às
costas, não precisaria de mentir nem de esconder o pai de toda a gente. A
partir de agora não haveria ninguém para o envergonhar, ninguém a seu cargo.
Estava livre!


Foi exactamente assim que Nuno pensou enquanto tratava de todas as
formalidades do funeral, assinava os papéis, pagava as contas, assistia ao
enterro. Mas assim que saiu do cemitério foi a casa do pai, abriu a porta,
passou pelos antigos quadrinhos pendurados pela mãe no corredor, sentou-se
no sofá velho onde o pai costumava aterrar para logo ser cuspido para o chão
e cair no tapete esburacado. Quedou-se, absorto, a observar os fragmentos de
pó a pairarem num solitário feixe de luz que entrava pelas portadas semi-
abertas da janela e, de repente, uma tristeza insustentável abateu-se sobre ele
e Nuno tomou consciência de que, agora sim, estava sozinho neste mundo e
sentiu-se novamente o mesmo rapazinho abandonado naquela maldita sala.
Odiou o pai por tudo o que lhe fizera, odiou a mãe por o ter excluído da vida
dela e, sobretudo, odiou os dois por terem morrido ou terem desaparecido, por
não terem cuidado dele, por não estarem presentes para o apoiar, como lhe
parecia que, apesar de já ser adulto, continuava a ser obrigação deles.


Fechou  a   porta   de  casa    e   prometeu    a   si  próprio que voltaria    em  breve   para
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