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Nuno arrumou a moto na garagem de um amigo que não sabia que ele a
deixava ali para sempre. Pedira-lhe para a guardar, dizendo-lhe em
contrapartida que estivesse à vontade para a usar quando lhe apetecesse.
Lançou um derradeiro olhar à Harley , com um sentimento de perda. Era o
único bem que tinha pena de abandonar, o resto resumia-se a porcarias sem
qualquer valor estimativo, livros que nunca lera, discos que não ouvia, uma
aparelhagem de som empoeirada, coisas assim. Tudo o que Nuno precisava
para recomeçar a vida estava na mala de viagem depositada há dois dias num
canto da garagem, à espera de que ele a viesse buscar. Não levava quase nada,
apenas meia dúzia de calças e camisas e pouco mais, o mínimo de roupa, o
mínimo de peso. O passado, tinha-o enfiado entre duas camisolas, uma
fotografia dos pais, tirada no dia do casamento, sorridentes à porta da igreja,
na altura mais jovens do que Nuno agora, esperançados numa felicidade que
haveriam de esbanjar sem parcimónia, fazendo-a em fanicos, até se gastarem
todas as lágrimas e todas as recriminações. Nuno mantinha o retrato por ser o
último pedacinho de memória, um instante registado numa imagem, a sua
única prova de que não caíra nesta terra por geração espontânea. Guardava a
foto como se guardavam os documentos, a salvo numa gaveta, pois embora
lhe afligisse a possibilidade de se esquecer da cara dos pais — tinha pesadelos
em que voltava a ser menino e dava-lhes a mão, sentindo-se seguro entre os
dois, mas, ao olhar para cima, via-os sem rosto e acordava em pânico — ainda
assim, observar a fotografia mergulhava-o numa melancolia sem nome, numa
mágoa próxima da revolta, a pensar na falta que lhe tinham feito, que lhe
faziam ainda, dado que não chegara a tê-los realmente, e a fantasiar
tristemente como as coisas podiam ter sido e nunca seriam.
Deixou a chave da moto na ignição, agarrou na mala, fechou a porta da
garagem e foi apanhar um táxi para o aeroporto.
Ao entrar no amplo átrio das partidas, Nuno deteve-se por instantes e olhou
em redor à procura de Regina. O avião partia à uma e meia, combinara
encontrar-se com ela à meia-noite. Olhou para o relógio, cinco minutos
atrasado . Àquela hora não havia muita gente por ali, de modo que Nuno
calculou que não seria difícil localizá-la, e lá estava ela, sentada ao fundo,
frente ao balcão do check-in , em cima da mala, de perna cruzada, cotovelo no
joelho, queixo na palma da mão, a fumar um cigarrinho e, provavelmente, a
pensar onde é que ele se tinha enfiado, a conjecturar inquietações, se ele se
teria arrependido, se a deixaria especada à partida para uma viagem ao futuro,
tal e qual como algumas noivas abandonadas junto ao altar... Mas não, sorriu