O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

pendente com Nuno e essa o fornecedor não poderia deixar passar em branco,
ou então o melhor era mudar de actividade. Sentia-se aliviado por um lado,
mas furioso e raios me partam se não lhe faço a folha. Quanto mais pensava
no sacana, mais piurso ficava. Vou desfazê-lo, disse, de si para si, tremendo
de raiva, de indignação, jurando pela alma da sua mãezinha, cabra dura como
o caraças, enfiada e esquecida nas Mónicas por ter mandado desta para
melhor o cabrão do marido — o pouco estimado pai dele — por lhes chegar a
roupa ao pêlo a torto e a direito. Foi para proteger o meu filho, senhor doutor
juiz, justificara-se ela, frágil como um frasquinho na barra do tribunal, mas
aquele estivera-se nas tintas, porque as coisas não se faziam assim, minha
senhora, deixar o homem num charco de sangue, retalhado de alto a baixo
com um facalhão de cozinha e, ainda por cima, à frente da criança. A criança,
subitamente órfã de pai e mãe, vira-se a sobreviver de instituição em
instituição, mas, se aprendera alguma coisa com a mãe antes dela ser
enjaulada como um animal perigoso, foi que nesta vida quem nos lixa lixado
está. Por esta altura, a sua mãezinha já estava a fazer tijolo nos Prazeres, que
era para onde ele tencionava mandar também Nuno, assim o apanhasse a
jeito.


O fornecedor sentia-se profundamente ofendido e humilhado. Na sua
maneira de ver as coisas, Nuno andava a mangar com ele e, com isso, a pôr
em cheque a sua credibilidade profissional. Ser enganado e roubado já era
suficientemente mau, pois constituía uma falta de respeito intolerável; mas ser
ludibriado e gozado por um amador merdoso era o fim da picada. O
fornecedor tinha consciência de que, naquele ramo, um tipo não podia perder
a face. Se se admitia um deslize, em breve estava-se perante uma bola de neve
a descer descontrolada pela montanha abaixo. Uma avalancha de merda, era o
que era. Admitimos um desaforo hoje e é ver os canalhas todos amanhã a
fazerem bicha à nossa porta, convencidos de que nos podem enganar porque
não haverá consequências. Mas haverá, ah, se haverá.


Uma falha destas tinha de ser corrigida no próprio dia, pensou o fornecedor,
o assunto tinha de ser resolvido hoje . Com que cara iria ele devolver o meio
quilo de branca depois de lhe ter sido explicitamente perguntado se tinha a
certeza de que sabia no que se estava a meter?


—   Tenho   tudo    controlado  —   tinha   respondido.
— Pensa bem, sabes o que estás a fazer?
— Está tudo pensado, não há crise, pode confiar em mim.
— Eu em ti confio, até porque se me falhas arranco-te os tomates e obrigo-
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