O Último Ano em Luanda

(Carla ScalaEjcveS) #1

te a comê-los, mas e o outro?


— O outro é da minha conta, não se preocupe.
— Muito bem, se queres armar-te em empresário importante, eu arranjo-te a
branca , mas vê lá, por amor de Deus, não me falhes.


— Esteja descansado.
— Olha que é uma prova de confiança...
— Esteja descansado, já lhe disse.
Esteja descansado , dissera ele duas vezes, o senhor confiança em pessoa, o
empresário importante, dissera o outro. Borrei a pintura toda , abanou a
cabeça, desconsolado, mergulhado em meditações sinistras no banco da frente
do táxi que o transportava a grande velocidade, sem respeitar os semáforos.
Leva uma nota destas se me puser no aeroporto em dez minutos. É para já,
meu caro senhor. A questão, como o fornecedor bem sabia, é que o dono da
coca não aceitava devoluções, olhe, aqui tem o produto quase todo mais
algum por conta do bocadinho em falta?! Era uma trapalhada, as coisas não se
faziam assim. Um tipo responsabilizava-se por um negócio, tinha de o
cumprir, ponto final. E não adiantava explicar as circunstâncias ao homem
porque não era explicação dizer que o filho-da-puta do intermediário lhe
escapara duas vezes mesmo por baixo do seu nariz. Era estúpido demais. Não
tivera a inteligência de verificar se o café tinha uma saída alternativa; e não
fora suficientemente esperto para evitar que lhe voltasse a fugir na casa do
comprador. Isto sem falar que pusera o produto nas mãos do tipo sem
perceber que ele o pretendia enganar.


O táxi fez um ziguezague rápido entre dois carros mais lentos. O motorista
engrenou a terceira e carregou no acelerador, borrifando-se para o limite de
velocidade porque o tempo estava a contar, tic tac, tic tac. O passageiro
consultou muito enfaticamente o relógio no pulso pousado no saco da TAP
que levava no colo, depois olhou de esguelha para o taxista, como que a dizer
despacha-te ou não levas nada. O outro encolheu os ombros, aquela lata velha
não dava mais, disse. Vai apanhar um avião, não?, perguntou, levando como
resposta um silêncio ostensivo, mete-te na tua vida, queria dizer sem ter de
dizer, e o taxista percebeu a mensagem e acatou-a sem soltar mais um pio até
ao final da corrida. O fornecedor não estava para fazer conversa mole com o
motorista. De qualquer modo, preferia-o concentrado na condução. Na sua
mente ainda soavam as palavras do rapazinho da casa do Restelo, que por sua
vez ressoavam as palavras de Nuno. Tenho um avião para apanhar , dissera

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