Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

vê-la tomar a garrafa entre mãos e colocar o guardanapo de pano no braço, imitando a rigor uma
empregada escrupulosa, ele deu-se ares de fidalgo e estendeu a flûte para ela o servir
obedientemente. Cristiane sorriu, cheia de amabilidades, encheu a flûte e continuou a verter o
champanhe até transbordar e esvaziar o resto da garrafa em cima dele. Apanhado de surpresa, o falso
fidalgo esperneou, gritou, ficou histérico, mas encolheu-se cobardemente quando, acto contínuo, ela
lhe despejou o balde de gelo em cima e, num derradeiro gesto de desprezo, atirou-lho à cabeça.
Ao afastar-se da mesa de queixo erguido, ainda ouviu uma salva de palmas das pessoas em redor,
que tinham assistido à cena, deliciadas com a humilhação do tipo do Ferrari. Nem os amigos dele
foram capazes de se conter e explodiram em gargalhadas de desassombro.


Fora, um rodopio de gente chegava e acumulava-se à porta da discoteca. Não havia táxi mas, se
houvesse, ela não teria dinheiro para o pagar. Não se atrapalhou. Teve uma inspiração, lembrou-se
que poderia esmagar ainda mais o vermezinho se lhe levasse o adorado Ferrari. Dirigiu-se ao
porteiro, pediu-lhe a chave do carro. «Esqueci-me do batom», disse, fazendo aquela cara gira de
menina despassarada, que não falhava nunca.
Deu à chave, o motor ronronou os seus cavalos. O porteiro, alarmado, veio a correr para a impedir
de levar o carro. Cristiane trancou as portas e engrenou a marcha atrás. O Ferrari saltou do passeio
com estrondo ao recuar com uma guinada rápida para a direita. A mão procurou a primeira, a
mudança arranhou ao entrar, o motor soluçou, ela carregou com força no acelerador, o carro ganhou
fôlego e voou dali para fora. O porteiro, estupefacto, ainda a viu erguer um dedo médio no ar antes
de chegar ao fim do parque de estacionamento, virar à esquerda num frémito de pneus forçados e
desaparecer na estrada principal.


João Pedro não podia saber qual era o interesse que Cristiane tinha por ele quando a conheceu, ou
sequer se ela tinha algum interesse. Ela não lhe dissera «fica comigo para me ajudares a ultrapassar a
morte do meu pai», nem lhe explicara que o escolhia porque o pai lhe dissera que o admirava como
pintor. João Pedro não imaginava que Cristiane se culpava por ter mantido uma relação distante com
o pai nos últimos anos, e que se agarrara à ténue ligação que descobrira haver entre eles. Claro que o
comportamento dela não passava de um mero expediente psicológico, um reflexo da ânsia de se
redimir, de compensar a injustiça que lhe fizera em vida, procurando honrar a sua memória, nem que
fosse pela partilha dos mesmos interesses — neste caso, o gosto pela pintura de João Pedro.
Instintivamente, Cristiane percebera que os interesses comuns aproximavam as pessoas, e ela
desejava tanto reparar o irreparável.
De qualquer modo, Cristiane ultrapassara essa fase e, agora que conhecia melhor João Pedro,
sentia que gostava dele, sinceramente. Era cedo para dizer se se apaixonara, a paixão, o amor, eram
sentimentos profundos que ela afastara do seu espírito durante demasiado tempo com uma
determinação absurda. Mas, sim, já admitia para si própria que ele a fazia feliz.

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