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Qual era então o interesse de João Pedro por Cristiane? João Pedro estava a descobrir a vida pela
primeira vez, ou, se preferirmos, a atrever-se a viver sem receios. Também ele encontrara o seu
expediente psicológico para ultrapassar o bloqueio que o impedia de usufruir plenamente da sua
autonomia de homem livre. Era algo que João Pedro nunca concebera. Não obstante ter atravessado
fases fundamentais da vida de um homem — terminara os estudos, casara-se, tivera filhos —, algures
no seu mais remoto passado houvera algo que se quebrara e não voltara a sarar. Em consequência,
reagira defensivamente fechando-se para a sociedade. Antes, ele não vivia mesmo neste mundo, ele
ficava em casa a ver o mundo pela televisão. Mas, agora, transformara-se. Assim como Cristiane
queria arriscar-se a amar, João Pedro arriscava-se a viver sem continuar a intimidar-se com o
mundo. Ela já vivera tudo, mas recusara sempre o amor; ele já amara muito, mas nunca se arriscara a
sair do ambiente controlado que era o casulo familiar, o centro do seu amor.
Por coincidência, tinha acontecido aos dois a mesma experiência traumática de se desfazerem os
nós das ligações familiares de cada um. Experiência essa que Cristiane padecera com o pesar do luto
e João Pedro preferira rodear cautelosamente, como lhe era peculiar. Para não enfrentar o desgosto
de perder Clara, ele enveredara por uma fantasia extraordinária que agora vivia na plenitude e em
grande euforia.
Portanto, o interesse de João Pedro por Cristiane não era assim muito diferente do que ela sentia
por ele. João Pedro precisava da ajuda de Cristiane para viver o seu sonho libertador. Mas nenhum
deles pensava no outro nestes termos, evidentemente, em especial João Pedro, que estava tão fora da
realidade que acreditava ter embarcado num destino movido por rodas fantásticas. Mas o problema
de uma pessoa entrar numa odisseia de faz de conta é que ia por aí fora sem travões, e o seu
comportamento tendia a ser tão volúvel que se tornava impossível de prever como é que acabava.
Deitado na espreguiçadeira de olhos fechados, João Pedro não dormia realmente, apenas fingia que
passava pelas brasas para não ter de conversar com Cristiane. Ali por perto, duas crianças
brincavam ao redor da piscina e os seus gritinhos alegres entravam como música de fundo pelos
ouvidos de João Pedro que, naquele momento, tinha o espírito ocupado com a imagem de Carol.
Recordava a noite passada. A abordagem dela fora uma surpresa total, mas hoje, pensando mais a
frio, parecia-lhe natural que se tivessem encontrado. Só não esperava que acontecesse no Brasil.
Não havia dia em que não acudisse ao espírito o sonho que lhe mudara a vida e lembrava-se bem
de que nessa noite providencial sonhara com duas mulheres. E, se uma era Cristiane, a outra era,
indubitavelmente, Carol! Bastara-lhe olhar para ela um segundo para ter a certeza absoluta. Era ela,
sem tirar nem pôr. Qualquer pessoa no seu estado normal teria pensado duas vezes, ou nem sequer
teria ligado a cara ao sonho, mas João Pedro estava capaz de apostar todo o seu dinheiro de olhos
fechados. Para ele, não havia dúvida metódica que atrapalhasse esta verdade absoluta. Na noite