Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1
— Queres o Odéon? Vamos para o Odéon!

Mas não foram. Era impossível, o cinema estava irremediavelmente destruído, feito num caco, só
ia lá com obras a sério, de alto a baixo. André, muito revoltado com o estado de degradação a que
deixavam chegar os nossos melhores edifícios, andou uns dias a bradar a sua indignação. Contava a
história do Odéon apodrecido a todo e qualquer que encontrasse. E não havia nada a fazer, dizia,
porque mudava o governo e permanecia a indiferença olímpica dos políticos pela cultura. Umas
bestas! Mas não se rendeu, perseverou na sua ideia até encontrar uma alternativa ao Odéon: o Tivoli.
— Mas, assim, perde-se o picante da ligação provocadora aos filmes pornográficos! — reclamou
João Pedro, desiludido.
— Bem sei — abanou a cabeça. — É uma pena, é uma pena, mas ficamos bem servidos. Já
negociei o salão do bar, que é espaçosíssimo. Poderemos reservá-lo por alguns dias e tem a
vantagem de ser visitado por centenas de pessoas nos intervalos dos espectáculos. É sucesso
garantido.
— Se tu o dizes.
— Não te preocupes, que vais ter uma exposição memorável.


Com efeito, André não se poupou a esforços. Para a noite da inauguração mandou instalar um
potente projector no exterior, que banhava de luz a entrada do teatro como se fosse de dia. O
marchand chegou com João Pedro e Cristiane num Rolls Royce branco. As portas do carro foram
abertas por valets vestidos a rigor e eles saíram debaixo de uma impressionante chuva de flashes
metralhados por um pelotão de fotógrafos. João Pedro tapou os olhos com a mão a fazer de pala para
se proteger dos clarões. Enérgico, André abriu caminho até à porta do teatro e levou João Pedro pela
passadeira vermelha. Subiram a escada interior, seguiram pelo corredor em frente, entraram no salão
à direita, onde já os esperavam centenas de convidados.
João Pedro foi recebido com uma ovação inesperada e teve um momento de hesitação, estacou à
soleira da porta perante a algazarra das palmas, os gritos de aclamação, a desordem dos fotógrafos a
atropelarem-se à sua frente pela melhor posição. André, que conhecia bem a tendência de João Pedro
para vacilar em situações de grande exposição, deu-lhe umas palmadinhas nas costas para o
incentivar.
— Tanta gente... — espantou-se João Pedro, esmagado.
— É bom, é muito bom! Estão rendidos, já os conquistaste —
disse-lhe André ao ouvido, sem desarmar a expressão radiante que escondia uma aflição.
João Pedro olhou para Cristiane como se pedisse socorro, e ela, deslumbrante no seu vestido
comprido preto, ignorando os seus ataques de pânico perante a multidão de desconhecidos que
cravava nele os seus olhos atenciosos, batia palmas virada para ele. André pressentiu o desastre
iminente, adivinhou que João Pedro iria dar meia volta e fugir pela porta da rua. A noite estava
perdida e todo o seu trabalho iria por água abaixo, pensou, era tão frustrante, até tinha conseguido
convencer João Pedro a vestir um fato escuro elegante, levara-o a uma das melhores lojas de Lisboa,
escolhera-lhe uma belíssima gravata cor de laranja, e agora ele recuava à beira da consagração.
Tudo isto se passou em escassos segundos, o tempo de João Pedro olhar para Cristiane,
interiorizar que aquilo não era exactamente a sério, recuperar a compostura confortado pela ideia de
que ainda caminhava nas nuvens de um sonho feliz e avançar triunfante em direcção às palmas que

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