fizesse ou dissesse algo embaraçoso. Justamente nesse momento, ele babava-se sem-cerimónia sobre
as mamas de uma balzaquiana impudente que o namoriscava, atraindo-lhe o olhinho brilhante para um
decote excessivo e arfante que palpitava com os risinhos abafados dela. André foi buscá-lo e levou-o
pelo braço para junto de uma senhora de idade avançada, que respirava autoridade com a mão
apoiada numa bengala de madeira fina. «É podre de rica», segredou-lhe, antes de fazer as
apresentações. João Pedro dobrou-se de um modo cómico perante a senhora, demorou-se a beijar-lhe
a mão. Ela ergueu uma sobrancelha circunspecta. «Meu rapaz, já pode devolver-me a mão», disse,
recolhendo-a. Ao longe, Cristiane observava aquelas cenas, e vendo André fazer um sorriso de
resignação, devolveu-lhe uma expressão compreensiva, um revirar de olhos. Está bêbado , pensou.
Também ela se via rodeada por dois desconhecidos maçadores, ligeiramente tocados, que
disputavam a sua atenção debitando comentários pretensiosos sobre os quadros de João Pedro.
Cristiane, ausente nos seus pensamentos, sorria ora à esquerda, ora à direita, mas já tinha desligado
há muito e não ouvia uma palavra do que diziam.
Pouco antes, Cristiane apanhara André a jeito e referira-se a Carol num tom casual.
— Espero bem que seja boa fotógrafa.
— Também eu.
— Costuma trabalhar com ela?
— Não, normalmente trabalho com outro fotógrafo que já conheço bem.
— Mais uma exigência da nossa estrela?
— Pois...
— Ele insistiu muito, foi?
— Um bocadinho.
— Ah, sim?
— Sim, quer dizer, não insistiu propriamente — corrigiu André, ao perceber que já metera o pé na
poça. — Só sugeriu o nome dela, porque eu lhe disse que o meu fotógrafo habitual estava ocupado
com outro trabalho esta noite.
— Mas então, não era uma inauguração prioritária?
Ele teve uma expressão conformada com as contrariedades da vida.
— E era, para mim. Mas para o fotógrafo, a prioridade é o que lhe dá mais dinheiro, e eu não tenho
o exclusivo do trabalho dele. Mas calhou bem a Carol estar disponível.
— Pois, claro — disse Cristiane, a pensar que André bem podia esforçar-se para disfarçar a gafe
que ela já sabia o que queria saber.
As pessoas estavam sempre a desiludir aqueles que mais as amavam, era um facto incontornável da
vida para o qual concorria o desejo. Para Freud, o desejo era a essência do ser humano e,
efectivamente, o desejo revelava-se o catalisador da realização humana no sentido em que só ele
podia levar o homem a agir e, consequentemente, a criar, a progredir, a fazer obra. O desejo tanto
podia produzir um admirável avanço tecnológico ou uma obra-prima, como ser a origem de todos os
desvarios. Mas sem ele o homem não era nada, não fazia nada senão vegetar no limbo da depressão.
Em contrapartida, uma pessoa com um desejo sonhava e era capaz de mover mundos e fundos para o
realizar. A tendência natural do pensamento ligava o desejo à felicidade: cumprido o desejo,
alcançava-se a felicidade. O conceito seria simples se a esse desejo não sobreviesse outro desejo e