se a realização de um desejo garantisse níveis de felicidade perenes, o que, evidentemente, não
acontecia. Em suma, ninguém sabia exactamente o que era a felicidade, esse Santo Graal que todos
buscavam pela vida fora, mas facilmente se entendia que a soma de desejos concretizados não era
igual ao estado de felicidade pleno mas sim a vários picos de felicidade, ou melhor, à felicidade
sempre adiada, porque esta era algo em que se tocava efemeramente e na maior parte do tempo
estava à nossa vista, lá à frente, no futuro, ao alcance de mais um desejo qualquer.
O desejo de João Pedro, o seu projecto actual para ser feliz, consistia em cumprir o seu sonho na
plenitude, ainda que não tivesse perfeita consciência desse desejo como um projecto. João Pedro, já
se sabia, conduzia a vida para que ela se passasse exactamente como no sonho que um dia o
arrancara à realidade triste e incompleta que não o satisfazia, embora pensasse que os
acontecimentos, tal como os sonhara, continuariam a ocorrer tão só por estarem predestinados. E no
seu sonho havia duas mulheres: Cristiane e Carol.
João Pedro não era uma pessoa má, não queria atropelar insensivelmente Cristiane em função de
uma vontade egocêntrica e hedonista, apenas estava desorientado, vivia uma época estranha e, na sua
bizarria, também muito criativa. Porém, Cristiane não podia acompanhar a excentricidade de João
Pedro porque ele nunca lhe contara que ela se tornara a representação real do seu sonho. E ainda bem
que não lhe contou, porque ela iria pensar que ele não era bom da cabeça e que tinha andado com um
doido varrido nos últimos dias. Em contrapartida, vendo-o agora à distância, por entre as pessoas
que o rodeavam e se interpunham no seu campo de visão, Cristiane sentia-se paralisada por uma
perplexidade que não conseguia explicar.
Na noite da inauguração, João Pedro deixara-a arrasada por lhe ter mentido sobre Carol e
surpreendera-a com o elogio público que chegara a ser embaraçoso de tão exagerado. Cristiane não
sabia o que pensar daquele comportamento tão errático. Porque haveria ele de obrigar André a
contratar Carol se não estivesse interessado em algo mais do que no seu trabalho? Sim, não fora
pelas qualidades profissionais dela, bem entendido, pois nem sequer as conhecia. Cristiane não era
ingénua e tinha uma espécie de sexto sentido apurado para detectar mentiras. Ora, ela já conhecia o
suficiente de João Pedro para saber que ele dizia sempre a verdade, de tal modo que podia tornar-se
desconcertante. Era a primeira vez que o apanhava numa mentira, e muito mal engendrada, muito
básica, precisamente, pensava ela, por falta de prática. Mas João Pedro mentira-lhe sobre Carol e,
no momento seguinte, pusera-se a elogiá-la à frente de toda a gente como se ela fosse a mulher mais
importante do mundo para ele. Não fazia sentido. Não que os homens não tivessem deixado de fazer
sentido para Cristiane há muito, mas mesmo assim... Que raio quer ele de mim, afinal?, perguntou-
se.
Cristiane não podia entendê-lo porque estava completamente enganada em relação a ele. João
Pedro não costumava mentir, mas ele próprio vivia enredado numa mentira pegada, de modo que a
verdade dele era, por definição, uma mentira. E, assim, a verdade da mentira podia tornar-se
demasiado confusa para fazer sentido.
carla scalaejcves
(Carla ScalaEjcveS)
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