A maior tristeza de Cristiane provinha de tudo o que tinha a perder, não só o amor por João Pedro.
Passou a palma da mão pela colcha macia da cama, alisando-a, como que a sublinhar a recordação
dos momentos felizes ali vividos. O que Cristiane tinha a perder se João Pedro desistisse dela era a
sua reconciliação com a vida e com o amor. Porque Cristiane percebera que a vida sem amor
tornava-se vazia e desprovida de interesse. Lembrava-se de ser muito jovem — ainda antes de se ter
rebelado contra o amor e de ter tomado a firme e absurda decisão de não voltar a apaixonar-se,
porque as constantes mudanças de país lhe traziam a dor da separação — e de, nessa fase de
descoberta, do início da adolescência, ter muitos amigos, sobretudo nas férias, que eram passadas
sempre no Algarve, no mesmo lugar onde reencontrava as mesmas pessoas de ano para ano. Nessa
época, tinha um grupo com quem passava o dia na praia e a noite na larga relva frente ao restaurante
do aldeamento, e eram amizades vividas com emoção e que julgava eternas. Mas essas amizades
haviam-se diluído com a vida. Cristiane e as amigas tinham-se tornado adultas, elas tinham casado e
tido filhos, ela começara a voar pelo mundo e deixara de ir de férias ao Algarve, perdera o contacto.
Em todo o caso, subsistiam os pais, para quem ela podia canalizar a sua atenção e o seu amor. Mas a
mãe morrera, o pai morrera, e Cristiane definhava numa vida anódina e inconsequente, porque, bem
entendido, manter-se ocupada a trabalhar, saltitar de amante em amante e divertir-se em festas
internacionais não dava sentido à vida. Faltava-lhe um objectivo maior, algo que não fosse só viver,
ainda que tivesse uma vida aparentemente boa, dinâmica e alegre. No final do dia voltava para casa e
estava sozinha. Por outras palavras, ter um objectivo maior significava viver para alguém e não viver
apenas para si mesma. Se tivesse marido e filhos, ou até se estivesse divorciada mas com filhos, aí
sim, haveria um projecto. As pessoas próximas traziam alegrias e aborrecimentos, os amantes e os
filhos — cada um à sua maneira — nunca estavam satisfeitos, exigiam a nossa atenção, exigiam tudo
de nós, consumiam-nos! E desse conflito entre o amor e o desejo de um momento de fuga das pessoas
que amávamos, surgia o equilíbrio, enfim, aquilo a que se chamava a vida real. Sem isso, uma pessoa
corria o sério risco de se sentir a marcar passo e, por mais preenchido que fosse o seu tempo,
haveria sempre uma sensação de superficialidade, de carência de algo de essencial.
Cristiane descobrira com João Pedro a possibilidade de regressar à vida. Os excessos obscenos
que se tinha permitido com ele, em nome de um prazer sexual sem sentimentos profundos, fora apenas
o princípio de uma consciência íntima, poderosa, que se revelara, surpreendentemente. Depois,
crescera nela uma vontade enorme de romper com os bloqueios emocionais de sempre e voltar a
amar. Sem saber, ele dera-lhe esperança; sem lhe prometer nada, ele oferecera-lhe algo maior do que
o mundo. Cristiane contava com João Pedro e não estava preparada para ter mais uma desilusão de
amor, não desta vez, que estava determinada a não estragar a relação por falta de coragem de a levar
até ao fim. Porém, a frustração começava já a instalar-se nela e um sentimento de revolta crescia na
sua mente e invocava a necessidade de desforra.
Eram três da manhã. Cristiane trocou de roupa, vestiu umas calças de ganga, uma t-shirt , foi buscar
as ferramentas, começou a desmontar a cama. Coisa pouca como vingança, era certo, mas pareceu-
lhe intolerável dormir sozinha na sala. Na manhã seguinte, João Pedro haveria de notar que ela
retirara a cama e poderia retorquir-lhe com desprezo que a mudara porque queria a sala arrumada,
como se não tivesse qualquer significado para ela mantê-la ali. Trabalhou afincadamente madrugada