Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

filha mais velha e vitimava-se muito, suspirava entre lamentos, quase a desfalecer, e ela ficava
indignada, acusava a irmã de ser insensível e não se importar com a saúde frágil da mãe. E de facto,
Carol não se impressionava nada com esses achaques teatrais que tanto afligiam a irmã. De modo que
se foram incompatibilizando por causa do carácter perverso da mãe.


O que incomodava realmente Carol era a tristeza perene do pai. Via-o melancólico, calado num
canto a fumar o seu cigarro, suportando em silêncio as exprobrações persistentes da mulher, e
preocupava-se. Por vezes, ainda o procurava na quinta, interrompia-o no trabalho e tornavam a
percorrer os caminhos poeirentos entre as árvores de fruto, a sentar-se à beira do tanque da rega,
mergulhando as pernas na água fresca, com as calças arregaçadas, e a ter as suas longas conversas, o
seu momento loquaz, despreocupados, sem darem pela tarde que se esgotava na serena tranquilidade
de um céu de tonalidades avermelhadas, de um sol tépido, enquanto bandos de pardais chilreantes
pairavam sobre os galhos e alguns, mais afoitos, vinham bebericar ao tanque de fundo verde. Nessas
alturas, o pai soltava-se e voltava a ser o homem alegre que outrora seguia diligente a sua menina a
pedalar o triciclo, dando gritinhos de felicidade.
Mas eram momentos fugazes, meras intermitências num quotidiano sem chama. O trabalho já não
compensava as frustrações de uma vida e a depressão instalava-se nele como corolário de um
casamento massacrante.


Quando chegou a sua hora, Carol decidiu partir. Ia para Lisboa mesmo sem garantias. Ali não lhe
restava nada, não havia futuro, e ela não concebia ficar para um dia descobrir que deitara fora a sua
vida e soçobrara naquele marasmo de casas desleixadas, muitas delas desabitadas há muito, e de
ruas vazias, onde já só brincava um punhado de meninos maltrapilhos. Aquela aldeia só era bonita
para os forasteiros que passavam por lá ocasionalmente, quando deixavam as grandes cidades em
passeio de fim-de-semana. Carol não via nela nada de atraente. Tinha de partir. Arriscar-se-ia, ainda
que os pais não tivessem dinheiro para sustentar a sua permanência na capital.
Não obstante a evidência de que ficar seria desperdiçar a vida dela, a mãe de Carol opôs-se
terminantemente a que ela fosse viver para a capital. Ao contrário da filha mais velha, que incentivou
a estudar em Coimbra, a mãe proibiu Carol de fazer o mesmo em Lisboa. Mas ela rebateu todos os
argumentos.
— Porque não hei-de ir?
— Porque é muito longe.
— É agora longe!
— E não tens dinheiro.
— Vou trabalhar. Alguma coisa hei-de arranjar.
— O quê, vais-te prostituir?
— Mãe!
— Não olhes assim para mim. Julgas que não sei o que fazem essas galdérias que vão para
Lisboa?
— Mãe, eu não sou nenhuma galdéria!
— Olha a Maria Adelaide, a filha da Joana e do Zé Marcolino, que foi daqui com uma muda de
roupa e nas primeiras férias já vinha toda aperaltada, cheia da anéis de ouro nos dedos, pintada como
uma puta.

Free download pdf