A morte inesperada de uma pessoa amada pode revelar-se um fardo excessivo de suportar para
quem sofre a perda, dando a devastadora sensação de ser um desgosto impossível de ultrapassar. Em
geral, mesmo nos casos mais dramáticos, a dor atenua-se com o tempo e, então, a perda irreparável é
tolerada com saudade. A ferida vai sarando e fica uma recordação penosa. Carol estava ainda
demasiado fragilizada para aceitar a realidade brutal que a atropelara de surpresa numa época
particularmente difícil. Apesar de ter o apoio dos muitos amigos da universidade, ao fim do dia
recolhia ao quarto da pensão onde enfrentava o fantasma da solidão, e, inconscientemente, procurava
expedientes morais que lhe abreviassem o sofrimento. Atribuir responsabilidades à mãe, que nada
fizera para ajudar o pai, e à irmã, que se rendera à doença, ajudava-a a aliviar a sua própria culpa.
Assim, transferiu os sentimentos negativos para elas, convencendo-se de que o pai morrera devido à
indolência delas, e este processo mental inquisitório, agravado por ressentimentos antigos, criou em
Carol uma repulsa tremenda por elas.
Voltou a casa da mãe mais três vezes, uma por mês, e em todas acabou a discutir com ela e com a
irmã, que agora ia vê-la sempre ao fim-de-semana e fazia questão de criticar Carol pelas suas
esparsas visitas. O rompimento definitivo deu-se após um desses momentos de tensão, em que Carol
acabou por explodir e despejou de uma assentada todas as injustiças que lhe atormentavam a alma.
— Se estás tão preocupada com a mãe, gasta um bocadinho do teu ordenado de médica para lhe
dares melhores condições e ela não ter de viver nesta casa de merda!
— Mas eu não tenho...
— De merda! Ela vive numa espelunca porque gastou o dinheiro todo no teu precioso curso!
— Isso não é verdade, eu ajudo como...
— E, sabes? Eu trabalho para pagar os meus estudos.
— ... posso.
— De qualquer maneira, ela esteve-se sempre nas tintas para mim, não lhe devo nada.
— Carol, como podes dizer isso?! — protestou a mãe, escandalizada.
— Cala-te, sabes muito bem que é verdade.
— Não fales assim com a mãe!
— Falo como me apetecer!
— Não, não falas, não tens o direito!
— Eu sempre me preocupei contigo, minha filha. Não mereço isso — lamuriou-se a mãe.
— Mereces isto e muito mais. Tu só te preocupas contigo. Querias que ela tirasse o curso para
fazeres boa figura na aldeia, mais nada. Nunca quiseste saber de mim nem do pai. Nem reparaste que
ele estava a morrer. Como é que não deste por isso?!
A mãe levou a mão ao coração.
— Carol... — gemeu.
— Nem acredito que disseste isso à mãe! — exclamou a irmã, chocada.
— E tu deixaste-o morrer sem lhe dares a oportunidade de tentar um tratamento!
Um silêncio pesado caiu na sala. A mãe abateu-se numa cadeira, apoiou os cotovelos na mesa de
jantar, escondeu o rosto contristado entre as mãos. As irmãs olharam-se com ódio.
— É melhor ires-te embora — disse a mais velha, num tom de voz cortante.
Carol estava possessa.