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Nessa noite solitária uma chuvinha morna interrompeu o Verão e quando Cristiane desceu do
quarto descobriu uns veios de água riscando as vidraças da sala. Foi à cozinha procurar comida.
Abriu o frigorífico, onde encontrou uma sopa estragada que se esquecera de deitar fora antes da
viagem; uma embalagem de fiambre fora de prazo e com um cheiro duvidoso; uma alface apodrecida;
e três pêssegos igualmente em muito mau estado. Deitou tudo para o lixo e descongelou três fatias de
pão. Fez torradas. Sentou-se ao balcão a barrá-las vagarosamente com manteiga e comeu-as sem
prazer. Fora, a chuva batia fraca na janela e ela observou espantada as gotas preguiçosas que
deslizavam pelo vidro abaixo, acentuando o seu triste desamparo.
A casa caíra num silêncio espectral, quebrado apenas pela chuva que fustigava as janelas, agora
com mais intensidade. Cristiane imaginou que eram as unhas compridas de uma mão maléfica a
tamborilar no vidro. Este pensamento sinistro acompanhou-a quando foi para a sala, e teve
necessidade de acender todas as luzes para se sentir segura.
A sala já não evocava o ateliê improvisado que servira para João Pedro pintar os seus retratos
famosos. Não passara muito tempo, mas esses momentos extraordinários ocorriam-lhe já como
memórias antigas. Havia um rico conjunto de sofás de couro castanho-escuro, um grande candeeiro
prateado pendente do tecto, várias prateleiras recheadas de livros, um extenso tapete grená que
cobria a quase totalidade do soalho, uma televisão gigante três metros em face do sofá principal.
Continuava a ser uma sala de dimensões invulgares, mas a mobília fazia-a parecer mais pequena e
acolhedora.
Cristiane foi sentar-se no sofá maior a ver televisão. Passou por um canal que exibia um
documentário sobre acidentes de aviação que a deixou arrepiada, mudou de canal, interessou-se
brevemente por um concurso de culinária, saltou mais alguns canais, largou o comando da televisão,
entreteve-se a pintar as unhas. Depois abanou as mãos para as secar mais depressa. Não tinha sono e
a noite prometia ser longa. Sentia-se deprimida.
João Pedro também demorava a adormecer, perturbado por pensamentos tumultuosos que o
deixavam em alerta, deitado na cama, de olhos pasmados para o quarto sombrio, mergulhado num
imenso negro sem dimensão. Aventava o drama. Receava ter melindrado Cristiane ou, pior ainda, tê-
la ofendido para a vida. Enfim, para a vida não podia ser porque, justamente, havia partes do seu
sonho premonitório que ainda não se haviam cumprido. Afigurava-se-lhe, portanto, impossível que
Cristiane cortasse relações com ele. Mas o silêncio dela, a rejeição do convite para jantar, diziam
tudo: Cristiane não estava satisfeita. João Pedro adivinhava uma explosão de mau génio e isso
incomodava-o, não gostava de discutir. As discussões eram contra a sua natureza, não tinha resposta
pronta, sentia-se estúpido.