Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

Não se calou o caminho todo, embora fosse a falar sozinho, porque João Pedro não lhe respondeu
uma única vez, nem sequer deu sinal de ter interiorizado o que lhe dizia.
Entraram em casa, o quadro continuava exactamente como João Pedro o deixara, mas a sala estava
outra, novamente arrumada, com os móveis no seu lugar e a brilharem como se tivessem acabado de
chegar da loja. André encarregara-se de tudo, contratara à pressa uma equipa de limpeza que entrara
com os seus baldes, as suas esfregonas, os seus aspiradores industriais e tinha feito a sua magia de
uma ponta à outra da casa. João Pedro, porém, nem reparou. André ficou um pouco desiludido, mas
rendeu-se à evidência de que pouco havia a fazer naquela altura. João Pedro estava ainda sob o
efeito das drogas que os médicos lhe tinham administrado.
Conseguiu que tomasse banho. Obrigou-o a despir-se e enfiou-o no duche.
— Há que te tirar esse cheiro medonho a hospital — disse.
João Pedro, obediente, soçobrou debaixo de água.
— Nem penses que te vou esfregar com o sabonete — avisou-o André, mas lá foi deitando-lhe o
champô na cabeça. Em seguida, meteu-o na cama e esperou um dia até que voltasse a acordar,
desanuviado e capaz de comunicar.


Preparou-lhe o jantar, ovos mexidos, fiambre, arroz e uma garrafa de vinho tinto. Sentaram-se à
mesa com o quadro por companhia. Conversaram longamente pela noite dentro sobre aquela obra
improvável.
— Não imaginava que estivesses a trabalhar este tempo todo — disse André.
— E não era para estar — reconheceu João Pedro —, mas encontrei umas fotografias no telemóvel
e, olha, comecei a pintar e não consegui parar enquanto não o acabei.
— Que loucura, que loucura...
— Pois foi, uma coisa de loucos. Não sei o que me deu.
— Estavas possuído, homem!
— É que estava mesmo, não via mais nada à frente.
— Tens consciência de que é uma obra de génio?
João Pedro esteve um instante a contemplá-lo.
— Está bonito, não está? — disse, esperando a aprovação de André.
— Bonito? Qual bonito, é uma obra-prima!
— Exageras.
— Não exagero, não. João Pedro, tens aqui um tesouro, uma... uma obra genial! Até me falham as
palavras.
— Achas então que é assim tão bom?
— Melhor, menino, melhor.
— Concordo que tem o seu impacto.
— Se tem, se tem...
Perderam-se mais um bocado a observar o quadro, francamente iluminado com os projectores que
João Pedro improvisara para o pintar dia e noite.
— E agora? — perguntou André.
— Agora o quê?
— Que fazemos com ele?
João Pedro encolheu os ombros.

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