Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

— Uma pessoa nunca fica mal vista por cumprimentar toda a gente, fica é quando não o faz.
— Pois, mas olha, eu estou aqui porque te vi entrar e vim atrás de ti, mas estou desconfiado de que
estamos enganados.
— Não me digas que estamos no velório errado!
Com efeito, velavam o defunto errado. Contudo, a filha inconsolável ficou de olho naquele rapaz
educado e atencioso, e ao vê-lo sair de fininho foi atrás dele.
Fora assim que a mãe de Clara conhecera o seu futuro marido, homem de boas famílias, herdeiro
aristocrata, endinheirado. Casara com ele dez meses depois, já com o feijãozinho na barriga, como
contava sem complexos. O pai de Clara honrara as suas responsabilidades, mas nunca foi nem bom
marido nem grande pai, pois abandonou as duas praticamente desde o início.


A mãe de Clara vivera quase vinte anos num casarão de tectos altos na Rua das Trinas,
passarinhando pelas largas salas, pelos longos corredores, senhora da sua posição social, apesar de
esquecida pelo marido, pela família do marido, pelos amigos do marido. Quando estava em casa,
Clara sabia sempre se ela vinha aí pelo tilintar do gelo no copo de uísque na sua mão. A mãe
administrava a casa de família com zelo e apresentava-se orgulhosamente com o título de condessa.
Quanto ao pai, Clara só o via esporadicamente, nos dias raros em que dormia em casa, entre uma
viagem a Paris e uma caçada no Ribatejo. Era encantador, mas ela não lhe tinha grande apreço.
A vida perdulária do pai, os gostos exigentes da mãe, o facto de nenhum deles trabalhar, a violenta
crise económica dos últimos anos, todos estes factores haviam contribuído para delapidar seriamente
o património familiar. O dinheiro evaporava-se à medida que o pai vendia as propriedades herdadas
e já não restava quase nada de uma fortuna centenária. O casarão da Rua das Trinas, derradeiro bem
da família, fora vendido há um ano por um preço desfavorável por causa da crise. Agora, moravam
numa casinha mais pequena, um duplex arrendado, igualmente na Lapa, mais cosy , como a mãe dizia
contrariada, pois precisara de muita imaginação para arrumar a mobília e os quadros em metade do
espaço que havia nos quatrocentos metros quadrados da Rua das Trinas.
Era certo que ainda tinham os milhões da venda do casarão e não morreriam à fome nos próximos
anos, mas o dinheiro gastava-se depressa e Clara já se compenetrara de que, no final, não restaria um
tostão para herdar. Fosse como fosse, ela desejava um marido coroado de sucesso, mas não
tencionava depender de ninguém e muito menos acabar resignada a passarinhar pelos salões
requintados de um palacete qualquer, de copo de uísque na mão. Isto, se lhe estivesse destinado um
futuro ao lado de um homem que pudesse oferecer-lhe palácios. A ideia não era absurda, Clara
vivera num desde pequena, mas, ainda assim, improvável.


João Pedro adquirira um prestígio na universidade bem maior do que suspeitara. Era dedicado ao
trabalho, obsessivo, perfeccionista. Procurava assim compensar a insegurança que lhe transmitia o
espelho. Tinha um pensamento recorrente: um dia, serei tão rico e tão famoso que ninguém me vai
chatear por ser feio e terei toda a gente a lamber-me as botas,
mas não tinha uma ideia muita
acertada de como as pessoas o viam. Bem, as pessoas não o achavam muito simpático, porque de
facto não era, mas João Pedro tornara-se um tipo reservado e pouco sociável por acreditar que os
outros não gostavam de si, o que não era exactamente verdade. De facto, se não gostavam dele era
porque João Pedro não dava muito espaço para criarem laços afectivos. De modo que andou anos a
lavrar neste equívoco determinante para o carácter que acabaria por enformar. Em contrapartida, o

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