Um Homem Escandaloso

(Carla ScalaEjcveS) #1

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Naquele dia perto do Natal em que Clara, chegada da lua-de-mel, foi buscar os filhos a casa de
João Pedro, ele saiu para dar uma volta e desanuviar. Depois daquelas duas semanas dedicadas
exclusivamente às crianças, apreciou a solidão com uma secreta excitação. Entregou os gémeos e o
bebé à mãe, ignorou o estado lastimoso em que se encontrava a sala, onde havia candeeiros
derrubados, lâmpadas fundidas, bolachas espalhadas pelo tapete, leite derramado e outros vestígios
de grandes batalhas infantis; fechou a porta de casa, meteu-se no carro e foi comprar jornais e
revistas e tomar um longo café a ler tranquilamente à mesa de um café num centro comercial.
Mais tarde, ao sair do café, passou por uma mesa onde reparou num careca, barrigudo e baixote, de
óculos, que se fixou nele. A cara dele pareceu-lhe vagamente conhecida, embora não fosse capaz de a
localizar, de lhe dar um nome. Tanto podia ser o empregado do banco como outro tipo qualquer que
João Pedro não conseguia identificar fora do cenário em que estava habituado a vê-lo. Não deu
importância ao assunto, até porque hoje em dia não era estranho ser reconhecido por desconhecidos
que ficavam embasbacados a olhar para ele, quando não o abordavam mesmo. Contudo, aquele
homem, que se encontrava acompanhado da mulher e de dois filhotes igualmente rechonchudos, foi
ficando mais vermelho à medida que João Pedro se aproximava, dir-se-ia até que estranhamente
assustado e, quando ia a passar pela sua mesa, o homem levantou-se da cadeira para o cumprimentar
a medo.
— João Pedro, estás bom?
O desconhecido teve um sorriso comprometido, João Pedro devolveu-lhe um sorriso surpreendido.
Trata-me por tu, portanto conhece-me, pensou.
João Pedro estava bem, estava excelente, e ele, que era feito dele? Quem diabo seria ele?
— Também, está tudo bem — disse o homem. — Cá andamos a fazer pela vidinha.
Pois, claro, tinha de ser, concordou João Pedro, alinhando na conversa mole, intrigado com a
sensação de que o conhecia, e mais intrigado ainda por ele parecer tão pouco à-vontade, corado e a
suar como um porco assustado minutos antes da matança.
— Tenho seguido a tua carreira extraordinária — disse ele, por simpatia. Mais conversa da treta ,
pensou João Pedro. — A minha mulher então é uma fã incondicional dos teus quadros.
Apresentou-lhe a mulher, que se pôs logo de pé para o cumprimentar. Uma senhora não se levanta
para falar a um homem,
teve vontade de lhe dizer. Mas a mulher, baixinha como o resto da família,
passou à frente do marido e avançou para João Pedro para lhe dar dois beijos e começar a falar, a
dizer coisas, a nunca mais se calar. Tomou conta da conversa, quis apresentar-lhe os filhos. Quer
apresentar-me os meninos, imagine-se...

— Levantem-se e falem a este senhor que é um pintor muito importante que andou com o pai na
escola.
Ah, uma pista importante, pensou ele.

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