— Deixem-se estar, não se levantem, não é preciso — disse.
— Levantam-se, pois. Era o que faltava! — contrapôs ela, autoritária.
O marido, o desconhecido, o antigo colega, foi arredado da conversa e soçobrava atrás dela, mas
João Pedro queria saber quem era afinal o homem.
— Então e tu que fazes? — perguntou-lhe.
Ele, atrapalhado, sacou a carteira do bolso de trás das calças, tirou de lá um cartão de visita e
ofereceu-lho.
— Estou nos automóveis — disse. — Se precisares de carro novo, dá-me uma apitadela que
arranjo-te uma coisa em condições, e barata!
— E o João Pedro lá compra os charutos em segunda mão que tu vendes, Joca! — admoestou-o a
mulher, desconsiderando o ganha-pão do marido.
Ele abanou a cabeça, cauteloso.
— Nunca se sabe, nunca se sabe...
João Pedro, ao ler o nome do homem no cartão, ao ouvir a mulher tratá-lo por Joca, teve uma
revelação. Era o Joca! O Joca atrevido, mau carácter e insidioso, que o gozava na escola. O Joca a
quem dera um soco e partira os dentes no recreio! O querido Joca, que se borrava só de o ver, já
adultos, uma vida inteira depois! Quis festejar o Joca, dar-lhe uma palmada nas costas, claro que lhe
comprava um charuto com rodas, declarou bem alto, para contrariar a sua detestável mulher. Haveria
de lhe telefonar um destes dias, quem sabe se não fariam negócio. Passou-lhe um braço enorme pelos
ombros, estreitou com força o Joca pequenino, balofo e assustadiço, despediu-se alegremente do
Joca, da megera, dos rebentos gorduchos.
— Temos de combinar qualquer coisa — disse ainda, exuberante — para recordar os tempos de
escola. Bons tempos!
O Joca levou instintivamente a mão à boca, como que lembrando-se dos dentes que ele lhe partira
nesses tempos de escola, e João Pedro foi-se embora, perplexo com aquele reencontro imprevisto.
Quem diria, encontrar aqui o Joca, vendedor de carros, deve continuar o mesmo fala-barato
intrujão de sempre. As pessoas não mudam nunca, pensou, abismado, ao afastar-se com um sorriso
nos lábios.
A visão de Joca, da mulher intragável de Joca, dos filhos gorduchos de Joca, todos à volta da mesa
do café, ficou na cabeça de João Pedro enquanto deambulava pelos corredores do centro comercial.
Ia a pensar que há um milhão de anos, na sua infância, o Joca assediava-o na escola e que esses
meses longínquos o tinham marcado brutalmente, de tal forma que o miúdo pacato e inofensivo que
então começava a formar a sua personalidade se tornara num adulto desconfiado, isolado, fechado ao
mundo. Provavelmente, pensou, se não tivesse sido o Joca a espoletar a crise que o afectou para a
vida, teria sido outra coisa qualquer. Bem, é certo que a agressividade do Joca fora negativamente
decisiva para a sua vida, mas também tivera um papel determinante nas escolhas que João Pedro
fizera posteriormente. Quer dizer, uma pessoa feliz e equilibrada seria tão solitariamente empenhada
e tão criativa quanto ele fora? Não lhe parecia. Ele, se fosse feliz, teria tido tendência para se
acomodar, para se contentar com pouco e, de certeza absoluta, não teria enveredado pelos caminhos
excessivos do último ano.
Era irónico pensar que Joca pudesse ter tido a sua quota-parte de responsabilidade no êxito de
João Pedro. Riu-se sozinho, a pensar que o bom do Joca estava a galáxias de distância de imaginar