que contribuíra para os dois milhões que tinha na conta bancária.
Mas, claro, uma coisa era o sucesso profissional e outra era a felicidade pessoal. João Pedro
pensou que ainda precisava de melhorar essa parte e, em seguida, encolheu os ombros: mais valia ser
infeliz com dois milhões no bolso.
Ficara-lhe a impressão maldosa e reconfortante de que o Joca, castrado pela sua mulherzinha feia e
despótica, também não seria lá muito feliz. Enfim, o tipo parecera-lhe verdadeiramente uma figura
insignificante. João Pedro perguntou-se até que ponto ele não deixara também o pobre Joca
destroçado e lhe marcara o destino com aquele fabuloso soco que lhe partira os dentes na infância. E
essa era uma perspectiva que nunca lhe ocorrera. Tê-lo-ia deixado estendido no chão só no recreio
ou para a vida? Agradava-lhe a ideia de que fosse a segunda hipótese.
João Pedro julgou o sucesso e a felicidade de Joca só pelas aparências. Mentalmente, arrasou a
vida do homem tendo em conta um encontro de escassos minutos. O Joca fazia-lhe dó; o Joca ficara
indelevelmente marcado pela murraça porque, como ele vira naquele encontro, se acobardara na sua
presença; o Joca não passava de um vendedor de carros e, na perspectiva de João Pedro, ser
vendedor de carros naquela idade era sinónimo de FALHADO; o Joca deixava-se diminuir pela
mulher em público; o Joca era um tipo acabado.
Joca podia não ser nada disso, podia ser um bonacheirão que ganhava pipas de massa a vender
charutos com rodas a pobres incautos; podia chegar a casa e dar porrada na mulher por se ter
esticado à frente de João Pedro; podia ser um tipo pacato que se estava nas tintas para as aparências
e que gostava de fazer patuscadas com os amigos no quintal relvado da sua enorme moradia em
Mira-Sintra. João Pedro não sabia realmente nada sobre ele, mas as pessoas passavam a vida a fazer
juízos de valor apressados sobre os outros, sem se preocuparem muito com esse pequeno detalhe.
De qualquer modo, João Pedro sentiu-se mesquinhamente feliz com as conclusões que tirou e, dali
a pouco, vendo um pequeno boxer atrás do vidro da montra da loja de animais, entusiasmou-se e
comprou-o por impulso. Num passado não muito longínquo, João Pedro, que tivera sempre profundos
complexos pelo seu prognatismo, não teria tido coragem de comprar um boxer. Teria imaginado as
pessoas a rirem-se dele quando levasse o cão à rua e comparassem a fuça do cão com a fuça do
dono. Mas agora sentia-se seguro de si graças à triste existência de Joca, tal como ele a imaginou.
Por isso, levou o cão para casa.