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Uma pessoa perdida numa floresta sem bússola tem tendência para caminhar horas seguidas em
círculo e, sem se dar conta, voltar ao ponto de partida. Assim é a vida quando se procura modificá-
la: um homem bem pode mudar de guarda-roupa, de casa, de emprego, divorciar-se e viajar pelo
mundo, que, um dia, quando o círculo se fechar, voltará a ser como era, o mesmo de antigamente,
porque, no seu íntimo, não mudou de facto. Não é possível alterar o que há de fundamental em nós, as
características essenciais que nos definem na idade adulta perduram insensivelmente por mais que
nos esforcemos para as esmagar. Quanto tempo é que uma pessoa consegue manter a fachada, vestir o
fato que não condiz com a sua verdadeira personalidade?
Um ano depois dos estranhos acontecimentos que levaram o pintor obscuro, que era João Pedro, ao
reconhecimento global, o círculo começou a fechar-se. Em Abril, foi convocado por Belém para o
presidente da República lhe colocar ao peito a Grã-Cruz da Ordem de Sant’Iago da Espada, uma
condecoração que o apanhou de surpresa e que só foi receber porque André praticamente o arrastou
até à cerimónia.
Alguns meses passaram. João Pedro mudara-se para uma casa com jardim no mesmo bairro do
Restelo onde vivia há anos, porque seria impensável ter ido para mais longe. Era ali que se sentia
bem, na zona da cidade que conhecia melhor e à qual estreitava o seu quotidiano. Foi deixando de
utilizar o carro, que agora ficava semanas a fio parado na rua, como que abandonado. André aparecia
regularmente, incentivava-o a pintar, queria que se atirasse a uma dessas obras fracturantes,
sensacionais, que o tinham celebrizado. Justamente, João Pedro dizia que andava às voltas com uma
nova colecção, mas pintava marinhas, apetecera-lhe voltar às marinhas. E porque não?
— Bem, tu pintas o que bem entenderes, como é evidente, mas, João Pedro, tu inovaste tanto o ano
passado, fizeste história, e o mundo inteiro conhece-te por estes últimos quadros extraordinários, por
que raio é que hás-de voltar ao que pintavas antes?
— Mas, tu sempre disseste que depois de famoso poderia pintar o que me desse na veneta, e que
até poderia só assinar telas em branco que toda a gente acharia genial.
— Sim, eu dizia isso, não dizia?
— Dizias.
Os quadros que levaram João Pedro ao estrelato tinham resultado de uma circunstância muito
particular, de um impulso provocado pela fantasia que fora a crença de que vivia um sonho acordado.
Agora, esse estímulo desaparecera e João Pedro já não tinha inspiração para criar obras inovadoras
e espantosas como aquelas. Na realidade, ele atravessava uma fase pouco produtiva e, embora
dissesse a André que andava às voltas com as marinhas, nem isso acontecia, pois ia de manhã para o
ateliê, demorava-se a preparar os materiais, a misturar as cores, dava uma ou duas pinceladas e logo